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‘Virado à Paulista’ e o samba como documento vivo

Semba no idioma quimbundo, uma das línguas do tronco linguístico banto, significa umbigo. Ao dançar em roda, as pessoas se revezam no centro dessa formação encostando os umbigos, daí o termo umbigada.

Conectando a cicatriz no ventre que é a marca do lugar de onde viemos, e por onde as nossas mães nos nutriram enquanto estávamos no útero, se pede licença para entrar e sair da roda. Nativo de Angola, local de origem dos povos congos que foram massivamente traficados para o Brasil a partir do século XVI, o semba também possui sentido espiritual, é uma reza que se faz com a voz, corpos e almas.

Dos portos de Angola para os do Rio de Janeiro e depois redistribuído pelo interior de São Paulo com o intuito de trabalhar compulsoriamente na economia cafeicultora, segundo o etnólogo Ernesto Veiga Oliveira, foi esse grupo de africanos e africanas de origem comum que “possibilitou a reprodução dos padrões culturais africanos, compondo, dessa forma, uma região de grande interação cultural” (1966).

De modo que nos interiores paulistas do século XIX, o cultivo do café por pessoas escravizadas era paralelo à ressignificação dessas tradições de origem banto e, aos domingos, enquanto a comunidade escravocrata frequentava a missa, a coletividade escravizada aproveitava esse momento de pausa para fazer o semba nas áreas externas à igreja. O que ocorreu em muitas cidades do interior, segundo o sociólogo Marcelo Simon Manzatti, que se debruçou sobre o samba paulista. As cidades de Vinhedo, Quadra, Campinas, Mauá, Itu, Rio Claro, Sorocaba, com destaque para a cidade de Santana do Parnaíba, da qual Pirapora do Bom Jesus se emancipa em 1959, são apenas algumas das localidades nas quais se fazia samba de bumbo.

No caso do samba de bumbo de Pirapora, foram os encontros anuais em comemoração ao padroeiro da cidade, Bom Jesus, que reuniam fiéis que carregavam a sua fé e a manifestavam também no samba, que deram relevo a essa tradição. Por fé é preciso compreender também o culto a orixás e inquices cuja veneração foi adaptada ao chamado sincretismo religioso, que é uma forçada e violenta correspondência dessas divindades africanas aos santos e santas do catolicismo.

É no findar do século XIX e início do XX, durante o pós-abolição da escravatura, que a população ex-escravizada do interior em migração para a capital de São Paulo carrega consigo o samba de bumbo que se reconfigura no espaço urbano.

Essa história potente da continuação e reconfiguração de uma tradição que congrega o espiritual, musical e corporal nos é contada pelo coletivo Cênica (São José do Rio Preto/SP) com o espetáculo-cortejo Virado à Paulista. O grupo empresta o nome dessa iguaria da culinária bandeirante, ainda que hoje tenhamos conhecimento crítico acerca do processo de expansão da cidade de São Paulo promovido por esses desbravadores e genocidas que entraram para as narrativas como heróis. Apesar dessa procedência, não há como negar que o prato saboroso surgido nas expedições bandeirantes é hoje uma marca gastronômica do estado de São Paulo.

Com direção de Fagner Rodrigues e roteiro dele e de Simone Moerdaui, o cenário da peça é a rua, no caso da apresentação que assistimos era a praça, num sábado de manhã perfeito para ser palco de um dos espetáculos de encerramento. Com uma plateia plural, com bebezinhos de colo até pessoas idosas, o grupo trajado de branco e cru, num figurino que lembra as vestes das pessoas simples da roça, e com carrinho de apoio enfeitado de fitas coloridas, começa sua procissão sambadeira.

A companhia nos surpreende com a estrutura da obra que se inicia com passagens sabidas, como a falácia de que “São Paulo enterrou o samba”, trecho do samba Me perdoa poeta, de 1999, autoria de Leci Brandão e que percorre em sua letra um caminho semelhante ao do roteiro de Virado à Paulista. Nosso samba tem origens caipiras diferente do samba do Rio que se origina na casa das tias baianas que se instalam na capital fluminense durante o fluxo migratório do fim da escravatura, conhecido como diáspora baiana, ao que o elenco da peça informa “para ser sambista não precisa ser do morro”.

A audiência é convidada a sambar e a cantar algumas das músicas mais conhecidas e outras ensinadas durante a apresentação. Existe a crítica ao sincretismo religioso já mencionado e a como ele funciona enquanto mecanismo de apagamento das religiosidades não europeias e não brancas, inclusive uma personagem que representa um padre tenta interromper o cortejo algumas vezes, sem sucesso.

Também é revivido o surgimento dos cordões de Carnaval e nesta ocasião é explicado ao público que o bumbo é um instrumento que caracteriza o samba de São Paulo, são citadas duas baluartes desse início: Dona Maria Esther, do Samba de Pirapora, e Madrinha Eunice, fundadora da Recreativa Beneficente Esportiva da Escola de Samba Lavapés Pirata Negro, primeira escola, datada de 1937.

Mestre sala e porta-bandeira se apresentam para a plateia muito empolgada, que recebe uma cervejinha gelada de presente, e os bairros da capital nos quais se propagou o estilo paulista de fazer samba são mencionados como o Bixiga e a tradicional Grêmio Recreativo, Cultural e Social Escola de Samba Vai-Vai; a Barra Funda e o Brás. Também são relembrados os grupos de samba de bumbo que resistem no interior como Samba 13 de Maio do Cururuquara, Grupo Sambaqui, Grupo Cachuera, Samba de Lenço e  Samba de Roda da Dona Aurora.

Quando pensamos que a peça continuará como uma celebração talvez ingênua ao samba, aí é que a Cênica nos surpreende e expõe ao público a história da repressão e tentativas de criminalização desse gênero e de suas escolas. O que é muito importante, pois assim como ocorreu com o blues, tango, rap, rock e hoje o funk, são diversos os estilos musicais recriados ou nascidos da diáspora africana nas Américas que foram marginalizados e perseguidos como expressão social e cultural de uma coletividade preta, grupo humano historicamente violentado cujas contribuições para a sociedade ocidental e colonial – porque ainda vivemos numa enorme colônia, apenas mudamos os nomes – foram taxadas de baixa cultura.

A partir dessa reviravolta o tom do espetáculo é de denúncia, se descortinam os bastidores do samba a partir de composições de autoria do próprio grupo mencionando trecho de Desejo de Amar (um dos sucessos de Eliana de Lima, compositora e puxadora de samba-enredo), parafraseando-a e expandido as questões que a Cênica traz ao palco: “É hora de vocês estarem por perto para poder nos ajudar”.

Naturalizou-se a brutalidade contra as pessoas negras no Brasil, desde o primeiro navio negreiro que aqui desembarcou. O body counting é parte da encenação: quantos corpos negros caem agora enquanto vocês leem essa crítica?

Ao som de composições nos gêneros rap e funk com a sagração do atabaque, a Cênica encerra o espetáculo Virado à Paulista, que mais que uma declaração de amor ao samba e à sua história é a prova de que o samba é um documento vivo da formação de São Paulo. Mudando um pouco o bordão do radialista dedicado ao samba Moisés da Rocha: “o samba abre passagem”. Respeita nóis!

(Foto: Jorge Etecheber)

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

VIRADO À PAULISTA

Cênica

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