O FESTIVAL

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FIT Rio Preto 2022

FIT Rio Preto e os Teatros do presente

Os Teatros do presente não são apenas aqueles que acontecem no momento em que vivemos, e sim aqueles que, assim sendo, estão em diálogo e fricção com as questões vivas de nossa época. Ao olhar os espetáculos selecionados e convidados para esta edição do FIT – entre os mais de oitocentos avaliados pela curadoria –, salta aos olhos a relação bem apontada entre a cena teatral e a sociedade. Não foi um ato deliberado, um caminho escolhido de antemão pela curadoria. Foi consequência natural das recorrências, notáveis, entre os trabalhos inscritos, que apresentaram de uma maneira bastante determinada o interesse por essas traduções diversas da realidade viva, nos palcos e nas ruas.

Assim é que, certamente, temos uma edição pulsante e pautada, pelos artistas, em temas que nos chamam às questões quentes da vida coletiva, mas em opções estéticas variadas, que vão das encenações realistas às experimentações de linguagem, passando pela performance, a alegoria cênica, o humor, o drama, a tragédia e os gêneros que, híbridos, dão conta de ler sobre o tablado um real que também está em pleno trânsito. O Brasil e o mundo em vertigem, retratados no Festival. Entre as recorrências mais visíveis estão a presença da cena preta, com obras que sinalizam a grande vitalidade brasileira e mundial sobre o tema, suas questões e impasses. Uma segunda recorrência evidente é a dos espetáculos que atualizam as questões de gênero. Montagens que tratam, entre outros temas, da existência trans, da homofobia, da mulher e do direito ao corpo. Cenas por vezes eivadas de poesia, por vezes movidas pelo enfrentamento direto e contundente dos assuntos, são um painel generoso sobre as experiências livres do humano, que pedem passagem e lugar.

Em outra frente também amparada nesse desejo manifesto do povo de teatro por dialogar com nosso tempo, estão os espetáculos mais frontalmente sócio-políticos. A cena latino-americana destaca-se por importantes reflexões a respeito do passado recente, sobretudo quando indicam o balanço dos regimes de exceção. Montagens que resgatam personagens da História para fazer declarações afetivas a respeito da tragédia que toma lugar nos momentos de suspensão da democracia. Dilemas históricos ainda não superados da sociabilidade, levados à cena.

Panoramas do teatro
Uma das tarefas de um festival de teatro é ampliar, no entretenimento e na reflexão, as fronteiras do olhar da plateia. Nesta edição do FIT, veremos um panorama generoso de possibilidades para o que chamamos teatro, que tensionam performance, corpo e tecnologia em jogos estimulantes de interação e linguagem.
Esta edição também traz uma boa representação regional. O Festival conta com importantes trabalhos de quatro regiões brasileiras e apresenta um painel rico em formas, temas, questões e origens. Sem cair em clichês regionalistas.
O FIT Rio Preto 2022 faz-se, assim, como um festival de múltiplas vocações. Antenado ao presente e aos assuntos que atravessam a vida brasileira e mundial, através das formas cênicas que convocam nosso olhar para maneiras novas de ver o humano, as relações, os jogos de poder e a importância da afetividade como forma de enfrentamento em um mundo e em um país onde a arte do teatro e sua simbólica ágora democrática são cada vez mais necessárias.

Adriana Macedo , Kil Abreu e Quitéria Kelly
Curadoria

Pensamentos em fuga

O projeto das Ações Formativas do FIT Rio Preto 2022 representa um esforço de multiplicação das relações do teatro com a cidade. Foi com felicidade que assumimos o compromisso de propor a todas as pessoas que realizam a experiência do festival diferentes espaços de reflexão, construídos a partir da premissa da fuga dos olhares estabelecidos. Reivindicamos um pensar em fuga, um pensar que critica e desconstrói verdades absolutas, pois nos perguntamos se haveria algo melhor que o teatro e as pessoas que o criam para assumir esse desafio.

A fuga que nos interessa nada tem a ver com o evitar as contradições, mas sim fugir dos lugares de poder consolidados, das práticas hegemônicas que replicamos sistematicamente e que, finalmente, naturalizamos. 

Queremos que o convívio propiciado pelo FIT seja uma oportunidade para relacionar as diferentes equipes criativas com pessoas que morem na cidade e, a partir disso, criar encontros e intercâmbios que – de mãos dadas como o teatro – facilitem repensarmos o que somos e o que fazemos como sujeitos ativos em nossa sociedade. Nossa pretensão é que tais encontros afetem as pessoas, mas como práticas de um movimento de fuga que discuta os modelos culturais e políticos consolidados.

Partimos da ideia de que o teatro é uma arte da falta, uma arte na qual nada é absolutamente completo, principalmente porque se realiza como experiência compartilhada com as pessoas do público. As ações formativas são mais um modo de fazer o teatro, expandindo aquilo realizado no palco ou na rua como cena.

Ao explorar outros âmbitos de convívio social, buscamos um movimento do pensamento, de diálogo e de construção de novos mundos, como uma obra coletiva que tem a cena teatral como catalisador. Abandonamos a ideia da necessidade da completude para pensar que o diálogo artístico faz-se mais profundo com as coisas não acabadas. Por isso, nossa curadoria fez-se em fuga, uma vez que buscamos todas as formas possíveis que nos levassem a abandonar a volúpia da perfeição e do controle. Pretendemos abrir espaços nos quais todas as pessoas que se aproximem das atividades do FIT possam viver acontecimentos que sejam de algum modo uma possibilidade de transformação.

Este colocar-nos em fuga significa, principalmente, uma tentativa de questionar a absoluta centralidade de muitas ideias que têm regido nosso pensamento sobre o teatro, tanto do ponto de vista técnico como ético e político. Tal centralidade reflete um exercício de poder que está orientado pela certeza de que tudo se justifica na busca do melhor espetáculo, e na premissa de que, em princípio, o teatro sabe como alcançar seus resultados. No entanto, um rápido olhar para a tradição do teatro do ocidente nos mostra, de forma óbvia, as marcas profundas do patriarcado, do racismo e da lógica produtivista meritocrática. 

Mitifica-se com facilidade a eficácia da linguagem como justificativa de inúmeras práticas que devem ser questionadas e postas em crise. Mas, isso não é algo simples de ser realizado, porque as estruturas e modos de fazer são resistentes em seu conservadorismo. Só o exercício de um pensamento em fuga, que reconheça criticamente os lugares que ocupamos, permite-nos realizar outro exercício, o da autocrítica e, a partir disso, buscar estabelecer práticas e pactos que coloquem em crise esses saberes e lugares.

Finalmente, cabe dizer que, como curadores, compreendemos que nossa proposta não pode responder completamente a todas as possibilidades que a riqueza da cena teatral no Brasil e nesta edição do FIT Rio Preto oferecem. Por isso, nosso esforço foi no sentido de reafirmar a necessidade do mais profundo questionamento de nossas certezas. Dessa forma, assumimos a evidente contradição de aceitar a tarefa de propor um conjunto de ações formativas e, ao mesmo tempo, sugerir que o espírito geral com relação a tais ações seja o da mais ampla discussão e questionamento. Consequentemente, nos anima a ideia de que possamos considerar que esta curadoria não precisa ser pensada como um produto acabado. Temos uma programação, mas estamos absolutamente seguros de que os intercâmbios definirão as reais possibilidades das Ações Formativas do FIT, de tal modo que convocamos todas as pessoas para que sejam responsáveis por propor, definir e criar os sentidos dos encontros que sugerimos.

André Carreira e Jé Oliveira – Curadoria Ações Formativas

Cenas a granel: Em festa

Uma obra artística é um grão, uma peça única, uma partícula em meio a uma profusão de possibilidades e associações, entre tantos gêneros artísticos e humanos. A qualidade do grão e da obra apresenta pesos e medidas diferenciados: uma afronta/ uma ameaça aos padrões generalizadores.
Neste espaço histórico, Swift-Armour, construído em 1944 para armazenamento agrícola e distribuição de óleos vegetais, com rótulos sui generis como “A Patroa” (óleo de caroço de algodão), “A Dona” (óleo de amendoim) e “A Prima Dona” (óleo de mamona), firmamos uma provocação, uma ode à diferença.
Cada apresentação, uma história, uma inspiração, uma semente para celebrarmos a reunião de corpos. Coletivos diferenciados e de natureza ímpar que, embalados pela música, pela cena, pela imagem e pelo processo de criação artística, pretendem satisfazer a nossa necessidade, inerente, de “cultura, diversão e arte”, muito além das padronizações de uma produção industrial acachapante.
Serão mais de 30 atrações que, reunidas, pretendem proliferar os encontros em cada noite promovida. Sabemos que, após tantas privações, distanciamentos e despedidas, atormentados por cada tragédia anunciada, precisamos, mais do que nunca, celebrar.
Agora é tempo de germinar a vida e semear um futuro melhor.

Cesar Augusto – Curadoria Graneleiro

Território de ideias e ideais

Símbolo de resistência e campo fértil para o pensamento crítico, o Festival Internacional de Teatro (FIT) de São José do Rio Preto está de volta numa edição particularmente especial. Após dois anos de pausa em razão da pandemia, o FIT chega em meio ao nosso respeito e solidariedade às famílias dos que partiram, e à celebração da vida dos que aqui permanecem.

Dotado de uma programação de inquestionável vigor artístico e rigor estético, o festival se firmou ao longo dos anos como espaço de discussão e reflexão que vai além do universo das artes cênicas. Abraça a sociedade com atividades formativas, movimenta múltiplos setores da cidade e abre caminho para o desenvolvimento econômico e social.

Nos palcos, em vias públicas e ocupando espaços alternativos, o FIT é democrático e plural, sem deixar de lado a natureza provocativa de peças que contemplam diferentes tendências e incentivam o debate produtivo. Justamente por seguir essa escrita, o festival se transformou nesse evento prestigiado e de dimensões internacionais.
São 53 anos de uma vitoriosa história que não se constrói por acaso. Fruto originário das sementes plantadas em 1969 em sua versão nacional, o festival chega à sua vigésima edição internacional como resultado de uma sequência de trabalho sério, perseverança, aprimoramento contínuo e parcerias sadias, como a realização conjunta com o Sesc São Paulo e os apoios do Sesi SP e do Governo do Estado, por meio da Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa.

A arte carrega o poder de conectar pessoas, a cidade, o país, o mundo, como engrenagem de uma grande cadeia produtiva, geradora de emprego, renda, conhecimento e amplitude de ideias.
Ao receber o FIT 2022, a Rio Preto de vocação progressista cumpre seu papel com a convicção de que o fazer artístico, definitivamente, transforma para melhor a sociedade.
Que sejam todos muito bem-vindos.

Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto

Tratar a realidade

Quando a absurdidade do real suplanta as perspectivas que se reputavam próprias ao domínio da ficção, como no insólito presente, é preciso voltar-se à realidade e tratá-la com instrumentos ficcionais – não para dissimular ou falsear fatos, e sim para reelaborá-los em termos analíticos, críticos e expressivos. Ofício coletivo e inventivo por excelência, o teatro é terreno fértil para esse tipo de inversão reflexiva, quando os acontecimentos logram ser concebidos em sua gravidade e complexidade mediante o distanciamento propiciado pela linguagem artística, em uma época que clama por mediações e traduções capazes de reapresentar a existência à humanidade atônita. Do acachapante agora, com suas voragens incessantes, há que se reunir forças e recursos para a revitalização da ágora, onde se possam repactuar os rumos da civilização.

Convicto em suas iniciativas de juntar pessoas para enfrentar dilemas existenciais obscuros, por meio de concepções cênicas mais ou menos rentes à realidade, o teatro goza de trajetória milenar que o credencia para intentos dessa monta.

Daí a importância de se fomentar institucionalmente essa arte, oferecendo condições para que ela viceje e, tão importante quanto, circule e chegue aos públicos – inclusive transpondo os limites dos grandes centros do país. Essa compreensão está na gênese do FIT – Festival Internacional de Teatro de Rio Preto, realizado pelo Sesc em conjunto com a Prefeitura de São José do Rio Preto. Fruto de uma política pública, o Festival Nacional de Teatro Amador foi criado pela municipalidade em 1969. Em 2001, com o envolvimento do Sesc, o Festival amplia suas fronteiras e assume caráter internacional.

Os dois anos da pandemia de Covid-19, com as inestimáveis perdas acarretadas, exigiram que o evento fosse temporariamente suspenso, mantido em estado de espera. Felizmente, é chegado o momento de retomá-lo, na 41ª edição, corroborando sua longevidade. A pujança desse retorno se expressa na combinação de espetáculos, encontros e atividades formativas protagonizados por grupos e companhias teatrais oriundos de quatro regiões do país (Norte, Nordeste, Sudeste e Sul) e de diferentes países de língua hispânica, bem como por agentes da cena rio-pretense. Para o Sesc, promover essa forma de reunião corresponde a contribuir com a construção de leituras cênicas da realidade, em chave plural, hábeis em lidar com seus impasses.

Danilo Santos de Miranda
Diretor do Sesc São Paulo