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‘Medusa in.conSerto’ é uma ode radical às monstras

Medusa in.conSerto foi o único espetáculo que assistimos duas vezes. Na primeira, estávamos no espaço do Graneleiro no horário da apresentação, e sem recordar de que seria a crítica a escrever, o que permitiu a fruição mais fluida sem expectativas da construção da escrita. Na segunda, já ciente de que seria um trabalho para analisar mais detidamente, fizemos algumas anotações e sanamos questões que permaneceram como ruídos ao entendimento da peça.

Algazarra é uma boa palavra para relacionar à Medusa in.conSerto, da Cia. Les Commediens Tropicales e Quarteto à Deriva (São Paulo). O ruído, o barulho, o incômodo, o desconforto aparece em um humor sarcástico edificado a partir dos estudos sobre opressão de gênero, especialmente do feminismo e consegue retirar a plateia de um lugar de conforto, apresentando-a a um possível confronto de ideias que conformam lutas sociais.

Com concepção, dramaturgia, encenação assinadas pela coletividade de pessoas das duas companhias em parceria com Beto Sporleder, e texto referendado no mito grego de Medusa assinado por Carlos Canhameiro e Michele Navarro, o espetáculo se destaca na programação por conta de todas as estratégias cênicas utilizadas que, para além do texto, pretendem colocar o corpo de cada pessoa espectadora, literalmente, na cena.

Enquanto o público bebe descontraidamente no Graneleiro, aparece a primeira personagem, um Poseidon meio bonachão, meio “careta”, brincante das festas da tradição, que segue conversando com as pessoas, convidando-as a dançar, realizando comentários espirituosos sobre o que se passa naquela ferveção. Inevitável não conectar a sua presença tão à vontade a de homens que ficam no limiar entre descontração e a invasão do espaço alheio, seja pelo tom e altura da voz, seja por uma postura no mundo que se apropriou dos espaços a ponto de interromper diálogos, risadas, para tomar as atenções para si. Comportamento recorrente entre homens cisgêneros, heterossexuais e brancos.

Poseidon é interrompido por dois homens convertidos que “conheceram a palavra de Medusa”, homens que passaram a compreender as questões mais básicas do feminismo em combate às práticas machistas em busca da relação de igualdade entre os sexos e, em meio à multidão, um deles, o “escolhido de Medusa”, elenca as glórias que recaíram sobre suas vidas.

A cena é uma paródia de adeptos de religiões neopentecostais que resistem a tudo e a todos que não compartilham das mesmas doutrinas cristãs. Muito oportuno ao atual momento político, onde a laicidade do Estado está sob ameaças constantes. Neste clima de sacralidade, um teclado faz as vezes de órgão enquanto nosso “escolhido” surpreende a plateia ao inverter situações tidas como corriqueiras nos relacionamentos heteronormativos entre pessoas cisgêneras. Apesar de ser início de Medusa in.conSerto, esse já é um dos momentos de mobilização das reflexões disparadas pelo texto da peça, acerca do qual poderíamos discorrer longamente.

Essas reflexões residem no comparativo entre as apresentações das duas noites, os públicos, os textos. Na segunda apresentação, temos a quantidade de público que o espetáculo requer: muita gente. O que faz com que as interações com/entre as pessoas sejam mais espontâneas. Também na segunda noite, o texto do “escolhido” é improvisado em virtude das presenças de mulheres trans, pois ao abordar o direito ao prazer das mulheres cisgêneras é focado o clitóris como parte do corpo que é pouco explorada nas relações sexuais (fato). A fim de englobar as mulheres presentes em sua diversidade, a adequação mencionando as mulheres trans e as travestis nesta parte da interpretação nos pareceu desencaixada.

Porquanto nesta breve passagem há uma questão que não é simples, porém é de real importância, pois Medusa in.conSerto pode assumir a sua verve feminina feminista que se articula com o resgate dos estudos sobre o feminino cisgênero como sagrado, ao retomarmos na atualidade os conhecimentos sobre ginecologia natural, ciclicidade menstrual em alinhamento com o calendário lunar, cosmologias que reverenciam o ventre como lugar de origem etc. Tudo bem, é uma celebração e resgate da autonomia das mulheres cisgêneras em relação aos próprios corpos e ao que nos foi negado e silenciado enquanto saberes por meio da opressão e da violência.

Por outro lado, o texto pode verdadeiramente compreender sensivelmente a condição feminina a partir de mulheridades nas quais estamos mulheres cisgêneras, mulheres transgêneras, travestis e homens transgêneros – uma vez que estes possuem clitóris – esquivando-se assim do binarismo heteronormativo e incorporando as múltiplas formas de vivermos sexualidades. Seria possível ainda o reforço ao autoconhecimento corporal, sexual, histórico e social, porque a história do corpo e do sexo circunscreve a história das sociedades.

Embora com essas ponderações, Medusa.in.Conserto nos coloca a pensar, e muito, sobre a naturalização das violências de gênero presentes na mitologia grega e que está presente e se estende a outras literaturas, reproduzindo nada mais do que as formas como essas sociedades tratam as mulheres (vamos utilizar a palavra “mulheres” já compreendendo mulheridades).

De modo que o emprego de alguns termos para informar sobre o estupro nos mitos, nos contos, nas narrações, não raro, não passam de eufemismos que minimizam a agressividade da relação sexual sem consentimento. Inclusive, a peça recorda-nos de que “não” é “não”! Além disso, traz todo um vocabulário que nomeia violências consideradas “sutis”, porém que fortalecem a estrutura do patriarcado, tais quais, gaslighting, gosthing, mansplaining. Se nunca escutaram ou leram nenhuma dessas palavras, procurem saber o que significam e a quais comportamentos se referem.

O espetáculo nos leva a um cenário que nos revela um Olimpo decadente, em meio às muitas estatuetas clássicas dispostas ao centro do espaço cênico e contextualizam visualmente a Grécia clássica. Existe um suposto caos gerado pela movimentação das atrizes, ora Medusas, ora Atenas, que sobem e descem de objetos cênicos, de cadeiras altas onde se sentam Atenas e Poseidon; pela banda que toca rock sobre um carrinho movido por todo ambiente forçando o público a se mover também.

O que inicialmente parece caótico está muito bem estruturado durante a peça, que também dispõem de dois telões nos quais são exibidos os acontecimentos do espetáculo em tempo real, produzindo imagens em ângulos inusitados, e paralelamente nos mostram outras apresentações da obra em espaços públicos centrais de São Paulo.

Além das músicas em estilo rock, das estratégias de circulação da audiência que a impede de assistir ao trabalho passivamente, confortavelmente, também identificamos a sugestão da destruição como solução para reerguer as relações de gênero na sociedade. Com a citação em looping de um excerto do clipe de Tina Turner que compõe a trilha sonora do épico distópico Mad Max: além da cúpula do trovão(1985), no qual se destaca sua personagem Aunty Entity, temos essa certeza. A personagem é uma liderança feminina experiente que ambicionou reconstruir a civilização pós-apocalíptica, porém no decorrer desse processo tornou-se despótica, criando muitas leis para garantir a imutabilidade de seu mundo e o controle sobre o mesmo.

Seria essa referência de Medusa in.conSerto uma crítica às vertentes radicais do feminismo que ao defenderem seus princípios aguerridamente interditam a dialogicidade como condição primordial para o alcance da liberdade? Ou o prenúncio de que sem uma discussão franca sobre direitos das mulheres nos campos da saúde, do trabalho, da educação, das sexualidades nosso desmoronamento como civilização será incontornável?

Não sabemos determinar, sobretudo porque as camadas de Medusa in.conSerto são múltiplas e indômitas. O texto, as atuações, o cenário, a movimentação de palco, o figurino (perfeito!) se apresentam de forma não linear, não inerte, sem garantias.

Se monstros chamamos os homens cisgêneros cujas obras se imortalizam ao longo dos tempos, numa conotação positiva que o relaciona ao sobre-humano, que tenhamos muitas monstras também, muitas Medusas a petrificar o que já não pertence à concepção de um futuro democrático comum que considere a humanidade de todas, todes e todos.

(Foto: Marcos Madi)

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

MEDUSA in.conSerto

Cia Les Commediens Tropicales & Quarteto à Deriva

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