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Nas aventuras da ciência e da alegoria: ‘Sinapse Darwin’

Espetáculo para as multidões, Sinapse Darwin (do grupo Casa de Zoé, de Natal-RN) pousou na imponente estrutura metálica construída ao lado do Lago 01, no Parque da Represa, em São José do Rio Preto, e coloriu de neon todo o ambiente. Com roteiro dramatúrgico e direção de César Ferrario, e elenco composto por Titina Medeiros, Nara Kelly, Múcia Teixeira, Caio Padilha, Dudu Galvão, Igor Fortunato, Toni Gregório e Yves Fernandes, Sinapse Darwin é um deslumbre para os olhos e para os ouvidos, com seu cenário, seu figurino, seus adereços e sua iluminação de forte impacto visual (com direção de arte de João Marcelino, e iluminação e cenografia de Rogério Ferraz), e sua música rock’n’roll ao vivo (com direção musical de Caio Padilha) que conduz e preenche a fábula contada.

É impressionante ver aquele sem-fim de gente que se aglomera em frente ao palco (mil pessoas? duas mil? mais?), algumas sentadas nas cadeiras colocadas pela produção do festival, e outras tantas e tantas em pé, esperando ávidas pelo começo da apresentação – e ali permanecendo até o final. É animador perceber o quanto o teatro pode atrair e mobilizar pessoas, o quanto os espaços abertos e gratuitos podem ampliar o alcance e a acessibilidade da arte e o seu diálogo com os mais diversos públicos. Em tempos pré-pós-pandêmicos, as atividades ao ar livre chamam e acolhem. É fundamental que tais iniciativas (por parte de artistas e também do poder público e demais instituições) sejam constantes e entrem na ordem do dia, proporcionando convivências e experiências estéticas de qualidade.

A multidão, corpo-coletivo que se auto-organiza, dá o tom e também os limites da fruição: muitas pessoas veem o palco de longe, muito longe, e/ou de lado, fora da área de melhor alcance das caixas de som, atrás de cabeças altas que bloqueiam a visão, espremidas em algum canto e/ou entre grupos de amigos que conversam, ao lado de pessoas sem paciência que assistem a vídeos (com som ligado) no celular, esticando-se para tentar ver algum fiapo da cena e aproveitar o espetáculo. A frontalidade estática, quase perpendicular, exigida pela encenação também acaba por restringir o raio de visão e as possibilidades de interação do público: naquele palco em particular, apreciam melhor o espetáculo aqueles que conseguem estar naquele miolo de plateia, naquela área pequena (em relação ao tamanho da audiência) exatamente em frente ao palco e que nem todes podem ocupar.

Ao se apresentar como um espetáculo ao ar livre, em um espaço aberto e público, Sinapse Darwin parece deixar de aproveitar o que a rua-etc tem de melhor: seus múltiplos e não-hierarquizados pontos de observação, sua tridimensionalidade relacional, sua proximidade corpórea e subjetiva, sua abertura ao caos e ao inesperado, sua humanidade perigosamente sedutora. Obviamente, em um trabalho artístico, escolhas (estéticas, técnicas, econômicas, muitas vezes circunstanciais) são necessárias, e cada escolha implica no preterimento de outras. Não se pode ter tudo ao mesmo tempo e agora. Assim, Sinapse Darwin escolhe a segurança e as possibilidades técnicas do palco frontal, e explora sua estrutura e seus recursos de maneira festiva e cativante.

Diante da plateia, uma sequência de cenas grandiloquentes que contam episódios da vida do naturalista britânico Charles Darwin, figura fundamental nas ciências e em tantas áreas do conhecimento humano moderno e contemporâneo. Em uma época marcada por ataques infundados e sistemáticos à ciência e às artes, Darwin surge no palco como aquele que contribui de forma decisiva com o desenvolvimento da consciência humana e de sua relação intrínseca com a natureza, sendo parte da natureza. A curiosidade, o rigor e a criatividade do método científico afloram em cenas que conduzem o espectador por um mundo de maravilhamentos e descobertas: animais e seres e bonecos de toda sorte (de mil tamanhos, mil cores, mil texturas, mil movimentações) povoam o palco e a imaginação de Darwin, que convida a todes a um mergulho no desconhecido e na busca pela compreensão da vida.

Atores que falam uma língua incompreensível e que, por isso mesmo, se abre às mais diversas possibilidades de interpretação. O foco, aqui, não são as palavras, mas as imagens e sons e movimentos e todas as sensações que acompanham essa aventura. Como nos relacionarmos com aquilo que, num primeiro momento, nos é incompreensível? Como aceitar o nosso não-saber e, movides por ele, abrirmos nossa percepção e continuarmos, alegres, frente aos desafios (desejados ou impostos)? Sem ignorar as dificuldades que uma postura inquieta e questionadora diante do mundo e da sociedade podem implicar – como na cena da escola, lugar igualmente incentivador e interditador da criatividade e da liberdade de pensamento e ação –, Sinapse Darwin se posiciona e aponta o seu recado, mobilizando diferentes canais cognitivos e relacionais em seus espectadores: “Não tô entendendo nada, mas tá muito legal! Tô adorando!”, diz uma moça à sua amiga, em algum lugar da multidão.

A alegoria é a gramática do espetáculo, contando histórias como quem conta um sonho. Uma narratividade da imagem e do símbolo, impregnada de lacunas e efeitos cênicos mirabolantes. Como em um desfile de escolas de samba, no qual as alas e carros alegóricos vão se sucedendo e contando uma história/enredo que não se pretende compreendido de imediato e em detalhes, mas que instaura um entendimento festivo e lúdico, levantando a plateia e convidando-a a cantar junto. Sinapse Darwin é um grande desfile alegórico-carnavalesco, com sua musicalidade roqueira e empolgante. A grandiosidade do cenário, com imensos andaimes e um rosto gigante e estilizado (com sua boca que engole o oceano e seus olhos que iluminam tudo que observam); os figurinos e adereços não realistas e hipercoloridos que se movem e se transformam; e, principalmente, o trabalho coeso e energizado do elenco (que canta, dança, voa e diz, sempre se direcionando generosamente à plateia, com forte característica circense), são os elementos-chave para a atração e manutenção da atenção e interesse do público, ao longo de pouco mais de uma hora.

Com tudo isso, Sinapse Darwin é um trabalho convidativo e impactante, condizente com o papel público e popular de um festival como o FIT Rio Preto, ocupando e promovendo encontros nas represas e em todos os espaços da cidade.

(Foto: Vivian Gradela)

Olhar crítico de

HENRIQUE SAIDEL

obra

SINAPSE DARWIN

Casa de Zoé

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