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‘Ombela’: fertilizando outras Áfricas nos imaginários de sua plateia

Muitos espetáculos apresentados no FIT contam com uma musicalidade mais sofisticada na sua composição. Com musicistas que se apresentam ao vivo, atrizes-cantoras e atores-cantores, parte expressiva das obras no festival demonstram a extensão de habilidades e talentos ativados para construção das cenas e das narrativas inerentes.

É o caso de Ombela – A Origem das Chuvas, no qual o elenco interpreta, canta, toca e dança a saga da jovem deusa de mesmo nome, uma menina intrigada por compreender os seus sentimentos e as respostas que o seu corpo dá a eles em forma de lágrimas.

Baseada no livro homônimo do escritor angolano Ndalu de Almeida, conhecido como Ondjaki, a obra refaz a jornada do herói à qual Joseph Campbell destrincha em O Herói de mil faces (o chamado à aventura; as provas do trajeto; o encontro com a mentora; o caminho de volta etc),  todavia, há uma heroína, e não herói, no centro da narrativa adaptada por Mariana Jaspe e Ricardo Gomes e dirigida  por Arlindo Lopes.

Antes de adentrarmos à experiência corajosa de Ombela, interpretada por Sara Hana, gostaríamos de comentar sobre o cenário discreto de artifícios, porém com muitas formas pequenas circulares e sinuosas em branco e prata, que representa tanto o Orum, terra dos orixás, quanto o Ayê, terra da humanidade, cuja separação dos dois lugares é explicada no início do espetáculo.

A peça faz menção há muitas populações africanas com destaque para os Iorubá, situados entre o Benim e Nigéria. Contudo, já no início aparecem cinco figuras trajadas em amarrações e padrões xadrez que demonstram inspiração no povo Masai para concepção de sua vestimenta; essa etnia está no Quênia e no norte da Tanzânia. Ou mesmo máscaras provenientes de várias populações que vestem estas mesmas personagens, como a famosa máscara com “rosto em forma de coração”, de nome Ekuk, do povo Kwele, da República Democrática do Congo.

A diversidade cultural das etnias habitantes do Continente Mãe está expressa do início ao fim do espetáculo, trazendo à plateia uma África plural que contraria o senso comum — que ainda propaga que o vasto continente é um país — e revela a densidade de pesquisa para elaboração de figurinos e cenários, enfim, da história Ombela.

Sucede essa cena uma bela sequência em diferentes técnicas de bonecaria que mostra o nascimento e desenvolvimento de Ombela até a sua pré-adolescência.  Ombela se depara com as aprendizagens do seu dia a dia entrecortadas por mistérios como o desconhecimento do porquê chora e de seu papel como deusa, sendo as lágrimas advindas de suas emoções o motivo de sua viagem de investigação.

Ainda que no Orum ela conte com o amor de seu pai e da companhia da passarinha, ela quer descobrir as razões de seus sentimentos e do choro. Há outras situações a serem desveladas como o repentino encolhimento de seu pai.

Antes de Ombela começar a sua jornada, seu pai confere vida à sua rã de pelúcia que a acompanha nesse trajeto que as fazem viver surpresas e desencontros. Ela, então, vai à sua avó, representada por uma boneca animada, e pede a “bença” (no dia das avós!). Pronta para partir, vai conhecendo o mundo, a natureza, seus seres e os/as orixás, que vão se apresentando individualmente e lhe amparando durante o curso. Primeiro é o orixá da criação, Oxalá, que bendiz a sua busca e nomeia a sua rã que passa a ser chamada de Van; seguido de Oxum, dona das águas doces, belamente trajada em dourado; depois Oxóssi, com quem aprende e dança a sua saudação: okearô!

A cada orixá, é ofertada ao público uma canção e elas nos proporcionam uma viagem paralela pelos ritmos afro-diaspóricos, dos mais tradicionais como o coco e o jongo aos mais contemporâneos e urbanos como a champeta e o rap afro-caribenhos. Nesse meio tempo, Van se perde e a audiência é surpreendida por uma voz de GPS que indica um destino à direita: é a rãzinha que ressurge à cena e festeja rever Ombela com o auxílio de um aparelho celular que ela escambou durante o período de desencontro.

Van se perde mais de uma vez enquanto a história é contada e esses momentos são usados para compartilhar saber histórico, pois assim como o smartphone, outros objetos com os quais Van reaparece em cena, como os óculos escuros, são obtidos por meio da tecnologia comercial do escambo, na qual um objeto é trocado por outro e que marca uma forma de comercializar ainda corrente em lugares do continente.

No encontro com Mãe Iemanjá é utilizado um recurso cênico muito familiar às crianças e que atribui à cena a sensação de que Odoyá e Ombela estão no fundo das águas salgadas – deixemos essa brincadeira que aparece no palco um tantinho em segredo. Numa reviravolta, Ombela e Van vão parar no meio de uma tempestade da qual Iansã e Xangô as salvam. Essa é uma participação emocionante, na qual tanto pelejam quanto agem conjuntamente para auxiliar a menina na sua busca. Prometem leva-la até Nanã, a dona do barro. Quando Ombela chega até a sábia senhora, ela está modelando a humanidade com uma esfera de barro em suas mãos, uma cabeça, um orí.

Ombela enquanto espetáculo, evidentemente perscruta um espaço na mente das crianças e, quicá, de jovens e adultos que assistem ao deslumbre que é a peça. Quando tratamos de disputa de narrativas a partir de um revisionismo acerca da hegemonia da civilização branca europeia no mundo ocidental, isso evidentemente que se refere também às histórias infantis.

Orixás não são contos, compõem uma cosmovisão referendada nas forças que existem na natureza e nos seus fenômenos, informam-nos sobre o surgimento de um mundo a partir da cosmologia nagô. É essa origem diversa das narrativas greco-romanas e judaico-cristãs que é oferecida à plateia a fim de se enriquecer imaginários positivos acerca das histórias que são de todos e todas, porém que são originárias de africanos e africanas.

A suntuosidade de Oxalá, Oxum, Iemanjá, Iansã, Xangô, Nanã nos remete a personagens de um universo mágico que tem sido pouco explorado nessa dimensão da fantasia, do alimento à imaginação onde tudo pode acontecer. Ombela, muito respeitosamente, explora as aparências e as qualidades de orixás a partir dessa possibilidade inventiva.

 Como na saga do herói de Campbell, Ombela amadurece durante o caminho que sinaliza a passagem de sua ingenuidade da infância para o percurso de autoconhecimento que se principia com a resolução de seu drama. Enfim, a revelação dos motivos das suas lágrimas: as de tristeza geram os mares e oceanos, as de alegria, os lagos e rios. Os seus choros são as chuvas que nutrem o Ayê. No entanto, o espetáculo não explica o que geram as lágrimas do seu público, mas temos uma hipótese: umedecem o solo da imaginação a fim de fertilizar outras Áfricas.

(Foto: Vivian Gradela)

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

OMBELA - A ORIGEM DAS CHUVAS

Sopro Escritório de Cultura

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