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O fim e os começos em ‘The very last northern white rhino’

Em The Very Last Northern White Rhino, o ginásio do Sesc Rio Preto se veste de preto. E de vazio. E de silêncio. E, sem pressa, se move. Sem pressa, se move e se dá a ver. O espetáculo – coreografado pelo espanhol Gaston Core e dançado por Oulouy, artista da Costa do Marfim radicado em Barcelona – abre um espaço distendido na programação frenética do FIT e na expectativa de um público acostumado com a hiperestimulação cognitiva e sensorial do mundo urbano contemporâneo, e instaura uma pausa, uma suspensão, e um convite. Para ser espectador, aqui, é preciso parar e respirar. Acalmar-se, assentar-se. É preciso afinar os ouvidos e calibrar os olhos. Respeitar os longos tempos e as amplitudes do espaço. Permitir-se um outro entender, um outro impactar-se, um outro reagir. É preciso querer as sutilezas, perder-se nas filigranas, assombrar-se com as singelezas. Denso e enigmático, The Very Last é um convite à perplexidade diante da finitude e das ausências futuras.

O ponto de partida da criação de Gaston e Oulouy é uma reportagem sobre os dois últimos espécimes vivos (uma fêmea e sua filhote) de toda uma subespécie, os rinocerontes-brancos-do-norte, originários do continente africano. Na vastidão de um habitat não mais compartilhado por seus pares, na solidão de uma existência sem a esperança de continuidade, as rinocerontes persistem e abraçam o vazio. Na vastidão de um palco imenso e aberto, na solidão (ou melhor, na solitude) de um ambiente monocromático (grandes cortinas pretas nas laterais e no fundo, linóleo preto no chão) com iluminação tênue, Oulouy (bailarino negro, com calça, camisa e calçados pretos) abraça o tempo e dança.

Seu corpo se move aos poucos: dedos, mãos, cabeça, rosto, braços, tronco, articulações, quadril, pés. A calma e o júbilo de uma dança que se sabe derradeira. Uma dança como uma forma de prece. Suas mãos dançam ágeis em frente ao rosto, hieróglifos de uma língua desconhecida que sussurra seus segredos no corpo. As mãos seguem sinuosas, com movimentos curvilíneos cujas trajetórias são constantemente quebradas e reorientadas. Um corpo em disputa, um corpo e uma movimentação conturbados e, ao mesmo tempo, tranquilos: espasmos de uma existência plena de si e em insistente negociação com o mundo.

A sonoplastia corre baixinho, periférica, com vozes e conversas em português, barulhos de veículos e outros sons cotidianos de mundo, e instala na plateia uma pequena dúvida – seria um som vazado do lado de fora do teatro, que estaria invadindo o ambiente? Seria um problema técnico no aparelho de som? A sutileza de The Very Last demanda calma e atenção, e incita também uma pequena mas intensa negociação com o mundo (são muitas as negociações), com suas velocidades e seus frissons. A voz do mundo passeia propositalmente pela obra, mas não preenche o seu vazio.

É importante manter os espaços vazios, abertos, amplos, para manter possível a abertura e a amplitude do tempo e da vida. Para que o som mais ínfimo possa se propagar e ser ouvido, para que o movimento mais delicado possa fluir e encontrar o seu lugar. Um espaço que se permite longe, uma geografia que se permite horizonte, e que não se dobra à ansiedade de um preenchimento fácil e apressado. É preciso aceitar e percorrer as distâncias – com os olhos, com os ouvidos, e com todo o corpo.

Igualmente silenciosa, a iluminação (quase sempre sem cores destacadas) modula e tridimensionaliza o palco, criando áreas, camadas, volumes. Liberta da obrigação de a todo momento dar a ver o corpo do bailarino, a iluminação de Ivan Cascon também dança a amplitude e as lonjuras. Áreas de penumbra, luzes de contra, corredores laterais, focos apagadiços, gerais potentes, refletores apontados para a estrutura superior do ginásio – tudo isso faz do espaço um ambiente de transição, dinâmico, em constante modificação.

E nessa luz fugidia, indomável, um corpo. O corpo que some na monocromia do ambiente – esconderijo e invisibilidade. Corpo-ausência. Como enfrentar a invisibilidade e a morte de corpos seres saberes danças que a norma racista capitalista quer extintos? Como escapar da tristeza e do apagamento que a violência do mundo branco quer sempre impor? Como não aceitar e não produzir fim? Talvez, uma das respostas de The Very Last a essas questões seja mostrar que é preciso escurecer os espaços (literal e simbolicamente) e as mentes, é preciso enegrecer os palcos e as percepções, é preciso ser preto e cada vez mais preto.

Oulouy é corpo-ambiente, amplo e vivo como o espaço. Corpo-tempo, ritmando e conduzindo a ação. Corpo-presença, corpo-insistência, corpo-dança. E ali, logo ali, as meias brancas se destacam estridentes e voam, riscando o chão e o ar. Sapateado. Passos de dança urbana, hip-hop que aciona todas as mínimas partes de um corpo e de um espaço que giram e rodopiam, plenos de vida e força contagiante.

O sorriso (ah, o sorriso!) também vem e se abre numa miríade de sentidos e sensações. Um sorriso satisfeito e contundente, dentes abertos e prontos diante do presente e do futuro. Um sorriso que olha a plateia e a convoca. A música eletrônica, batida que ganha o espaço e carrega em si o ápice da cena. As mãos no rosto que sorri são as mãos que dançam e não aceitam a extinção. Sorriso que confronta a barbárie e dança uma esperança corajosa, potente, fértil de futuro. The Very Last Northern White Rhino é uma dança sobre o fim, mas é também (e sobretudo) uma dança sobre e no agora, em todos os seus inenarráveis começos.

(Foto: Milena Áurea)

Olhar crítico de

HENRIQUE SAIDEL

obra

THE VERY LAST NORTHERN WHITE RHINO

Gaston Core

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