PAINEL CRÍTICO

  >  

OLHARES CRÍTICOS

  >  

Essas crianças também são nossas – ‘Estudo nº 1: Morte e Vida’

Vem cá, deixa eu contar uma coisa: não sou crítica de teatro, minha gente, eu sou uma dramaturga, uma poeta, eu sou travesti, é verdade, eu sou professora também, mas isso ainda diz pouco sobre mim, e não sou eu quem interessa no momento, é o Grupo Magiluth. É o Estudo nº 1: Morte e Vida. Quatro atores em cena durante quase toda a peça, operando som, luz e vídeo em cena e se defrontando com o que vem depois do fracasso e da arrogância ao tentar montar Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Mas isso ainda diz pouco sobre a obra.

Muita gente diz que a encenação de um texto é uma tradução dele em cena – ou transcriação. Também há quem defenda que o texto e seu autor ou autora precisa ser traído pra que dele venha uma obra viva no teatro. Não me parece que seja uma equação binária, onde ou o texto é traduzido ou é traído. Talvez seja mais efetivo pensar esses dois polos como as pontas de um termômetro. Em algumas peças apresenta temperaturas menores, buscando conservar a estrutura, as dinâmicas, palavras e personagens propostas pelo texto, e em outras a temperatura vai lá no alto, explodindo as formas identificáveis na literatura dramática e procurando o sentido subjacente a elas na realidade contemporânea. Ao trair o texto, se traduz ou transcria os reflexos de seu sentido em novas proposições estéticas.

É o caso de Estudo nº 1: Morte e Vida, que pelo próprio título já diz que a peça não é uma transposição do texto de Melo Neto à cena, e sim uma investigação, um olhar que vaza a obra. Em pajubá, poderíamos dizer que o espetáculo é um verdadeiro atraque, em múltiplos sentidos. Primeiro porque o Magiluth, grupo pernambucano, se atraca, se engalfinha, luta corpo a corpo e palavra a palavra com o poeta canônico da literatura brasileira nascido e crescido em Recife. Um traço de identidade que os aproxima, mas ao mesmo tempo um hiato geracional e de classe que cria abismos. Além disso, atraque também no sentido de uma peça com atitude incisiva, deboche, ironia, provocação e enfrentamento político contundente.

Formalmente, o espetáculo se inicia como uma peça palestra com forte acento épico, pois os atores comentam a todo tempo o porquê das escolhas estéticas, ou o porquê de não as fazer, desmanchando logo em seguida aquilo que inicialmente tinha sido proposto. Um desentranhamento do processo criativo colaborativo, marca do trabalho do grupo, que não parte de modelos clássicos pra encenar suas peças. E marca também das direções de Luiz Fernando Marques. Pra citar só um exemplo em que o processo vem à tona e ganha estatuto de obra ao invés de urdimentos a serem escondidos pela ilusão: a peça-filme Maria D’Apparecida: Luz Negra, de Dione Carlos, da qual, aliás, também faz parte Rodrigo Mercadante, que em Estudo nº 1 assina a assistência de direção e a direção musical.

A concepção do trabalho teatral, no Magiluth, é fundamentalmente plural e polifônica, quebra hierarquias tradicionalistas ao desfuncionalizar papéis já dados no teatro. Além de pesquisadores e criadores de linguagem, os atores também são produtores e autores tanto da dramaturgia de cena quanto do texto da peça. E não é uma dramaturgia menor por ser colaborativa. Pelo contrário. Ela tensiona Melo Neto com acidez e irreverência. Uma delicada e bem-humorada iconoclastia que culmina na cena final – que não vou revelar aqui pra vocês, pois, como não sou crítica, talvez eu acredite em spoilers.

Mas se mesmo com a coletivização dos meios de produção da cena continuamos a falar em traição é porque, em algum lugar recôndito, ainda partimos do pressuposto de fidelidade. E não foi esse termo que o ator Giordano Castro usou ao elucidar o processo criativo do espetáculo. A palavra que ele usou foi desobediência. Desobedecer ao invés de trair, uma troca de verbos que faz toda a diferença, pois não estamos na metáfora do casal, e sim na da autoridade paternal.

Uma cena me intriga muito no espetáculo: aquela em que o ator Bruno Parmera pesquisa no google “homem brasileiro nordestino pernambucano magro gay artista”, e acompanhamos todas as imagens que o algoritmo sugere. Ele não se reconhece em nenhuma delas, afirmando que só se encontrou no vídeo “Michael Jackson no canavial”, onde um dançarino em roupas de trabalhador da cana performa a música Billie Jean numa estrada de terra circundada de pés-de-cana-de-açúcar. Parmera dança lindamente, com movimentos leves e precisos, jogando com a sobreposição de sombras, sincronismos e descompassos em relação à coreografia do homem no vídeo.

(É magnetizante o uso da tela do computador projetada no palco. Vemos os programas de som serem operados, arquivos de word e mapas de satélites sendo acessados no momento presente do espetáculo, e muito mais. Uma peça que estreou no início de 2022 e viveu o momento de pesquisa durante o período mais agudo da pandemia, incorporando essa linguagem não só como tema, mas como ossatura exposta. É o atravessamento do ritmo alucinante na contemporaneidade esfarelando a arquitetura harmônica, regular e proporcional de Melo Neto)

Em determinado momento na cena de Parmera ao som de Billie Jean, ele sai de cena e retorna vestindo roupas e adereços tradicionais dos caboclos de lança, sobrepondo ainda mais uma camada de sentido às que já havia anteriormente. Sinto que Estudo nº 1 trata, entre tantas outras questões, do debate sobre autoridade e filiação, sobre o atrito entre cultura legitimada, erudita, e a dos trabalhadores, das coletividades, de todas as fodidas do Brasil. Em última instância, sobre as contradições das classes sociais na luta entre diferentes grupos: opressores versus oprimidos. A composição de Michael Jackson diz, em seu refrão: “but the kid is not my son” – “a criança não é minha”, em tradução livre. Que relações são essas de paternidade que a música detona em cena (“os olhos do bebê eram iguais os meus”, também diz a música) e que atrito elas criam com o texto de Melo Neto e a indumentária do Caboclo de Lança? Tão grande é a expressão poética desse momento que não sei elaborar uma resposta neste momento. Mas acredito que ao oferecer a pergunta já cumpro meu papel.

O texto da peça menciona repetidas vezes o “fracasso e a arrogância” ao caracterizar a atitude de querer montar Morte e Vida Severina. Arrogância significa presunção, prepotência, sentimento de superioridade, soberba, orgulho extremo. Por que querer montar Melo Neto significaria tudo isso? O fracasso a gente até entende, nós, grupos de teatro, trabalhadoras/es, as do andar de baixo, fracassamos sucessivamente, pois o mundo está programado pra isso, é sobre o nosso fracasso que se edifica o sucesso do 1%.

Como disse Kil Abreu, as formas de sociabilidade no Brasil nunca permitiram que sujeitos livres se enfrentassem concorrendo entre si, e, se a base do drama é essa (conflitos entre humanidades) então o drama foi e é inviável em nossa sociedade. Aqui, a maior parte não é considerada humana e literalmente não tem nem onde cair morta, como mostram tanto a cena do enterro do lavrador na peça de Melo Neto quanto a do entregador de app na do Magiluth. O drama, portanto, está fadado a fracassar, e desse modo entendemos por que o Estudo nº 1 só foi possível após o fracasso. Mas agora, e a arrogância?

Talvez pelo prestígio que a montagem de um clássico supostamente traria a um grupo de teatro… Talvez por avaliar que se estava além das capacidades que de fato o grupo teria, ainda mais considerando a realidade dos dois últimos anos… Talvez pela crise da masculinidade hegemônica, que inclui o laço frágil de paternidade, e que, pelo que parece, é negada e combatida pelos integrantes do coletivo, ainda que sejam só homens em cena. Talvez sejam por esses motivos, ou talvez outros, que o Magiluth descreve como arrogante a iniciativa de encenar Melo Neto. Ele que, como foi falado na mesa do FIT, era primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, todos os três filhos das oligarquias latifundiárias pernambucanas. Ainda assim, a atitude crítica na poética de Morte e Vida Severina não é uma mentira, e denota compromisso político do autor com a justiça social apesar de sua origem de classe.

O que fazer com essa história cheia de contradições, que golpe a golpe se radicaliza no Brasil? Um dia vamos conseguir entender a língua da elite, mesmo a da que se diz engajada com o social? – é possível negociar com ela? O que fazer ante à violência de classe que moderniza initerruptamente as formas de exploração, dos trabalhadores da cana aos da indústria têxtil, que ganham míseros 10 centavos a cada botão pregado na cidade de Toritama, capital do jeans? Dá pra ressignificar a masculinidade num país assentado sobre o domínio patriarcal? Mas isso ainda diz pouco sobre a obra. Perguntas audaciosas demais pra este momento.

Seria arrogância minha querer respondê-las. Mas é bonito o ato de perguntar, de expor as lacunas, assumir e expor as fragilidades e, através delas, gerar forças pra se contrapor ao reino de opressões, infelizmente, ainda e cada vez mais, de novo dado como algo natural e óbvio no Brasil. É isso que o Estudo n º 1 do Magiluth nos inspira e ensina a fazer.

Olhar crítico de

AVE TERRENA

obra

ESTUDO Nº1: MORTE E VIDA

Grupo Magiluth

OUTROS OLHARES

Antes de entrar ‘Neste mundo louco, nesta noite brilhante’, coragem!

HENRIQUE SAIDEL

Adeus, planeta lágrima – ‘Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus’

AVE TERRENA

Olhos de condor – ‘Fuego Rojo’

AVE TERRENA