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Que ‘luta’ é essa, Teuda Bara?

Como escrever sobre Teuda Bara? Olho para a página em branco no computador e me pergunto: como começar a escrever sobre/com/para alguém como Teuda? Como passear por todas as camadas, questões, gargalhadas e celebrações de um trabalho como Luta, solo-não-solo que Teuda apresentou no FIT Rio Preto 2022, no simpático Teatro Municipal Nelson Castro? Escrever sobre Teuda Bara é como escrever sobre o próprio teatro, é como escrever o próprio teatro, em todas as suas delícias e complexidades. Ao meu lado, tenho o livro Teuda Bara: comunista demais para ser chacrete, de João Santos, que conta a trajetória e umas tantas boas histórias dessa atriz mineira que há 80 anos espalha sua energia e sua risada pelo mundo – sendo mais de 40 deles dedicados ao teatro, especialmente com o Grupo Galpão (Belo Horizonte). O livro é um dos pontos de partida para o espetáculo dirigido por Cléo Magalhães, João Santos e Marina Viana – diretores-dramaturgos que também atuam naquele palco: “Esse livro dá uma peça!”, provocou certa vez a encenadora e ex-vereadora de BH, Cida Falabella. E deu.

Luta é um espetáculo-homenagem. Uma homenagem em vida – homenagem viva, efêmera, contagiante e contraditória, como o próprio teatro. Uma homenagem a Teuda, mas também todes nós, artistas, e também a todes nós, espectadores e apreciadores das artes da cena. A plateia entra no teatro e é recepcionada por uma Teuda vestida com um collant amarelo com cinto dourado e brilhoso (lucha libre!), meia-arrastão e sapato colorido de palhaço, sentada em uma grande bola de pilates laranja, no centro do pequeno palco. Ela cumprimenta quem chega, nos cumprimentamos. Marina Viana, andando pelo corredor e por entre as poltronas, carrega uma pequena mas potente caixa de som, que reproduz em looping uma gravação da icônica gargalhada de Teuda, que fala lá do palco: “Que plateia maravilhosa! Eu queria receber todos vocês com uma gargalhada minha, mas é muito tempo, eu não ia conseguir rir o tempo todo. Então a gente gravou”, justifica-se, e ri alto. Gargalhada sobre gargalhada. E o público ri. Gargalhada sobre gargalhada sobre gargalhada. Camadas e camadas de presença. Teatro.

Como toda luta que se preze, Luta começa antes de mim, antes de nós, antes mesmo que sentemos em nossas poltronas. Toda luta é uma sequência não linear e interseccional de lutas, no plural, sempre no plural. Toda luta é uma retomada, um não-desistir e seguir. E para marcar essa retomada, Luta “começa” com Teuda, golpeada, agradecendo a todes que estão ali, a todes que contribuíram com o espetáculo, e desejando merda. Agora, o palco está pronto: o ringue está pronto – arena imprevisível e desejada de encontro, de jogo, de relação. O gongo soa. Fight! Como pode ela saber que tudo começará de novo?

Nos 60 minutos seguintes, Teuda conta histórias reais e episódios marcantes de sua vida, desde a infância até a atualidade, misturando episódios pessoais com contextos histórico-políticos brasileiros e eventos da história no país. Mas não sem antes marcar o seu lugar: “Eu falo na língua de uma mulher sudaka!”. E não sem antes marcar o nosso lugar: “Esse show é meu, porra!”. Sim, Teuda, esse show é teu. Como é tua essa história de vida radicalmente linda e essa história de arte radicalmente importante e digna de compartilhamento e reconhecimento. Esse show é teu e é nele que eu me reencontro com essa história encarnada – porque no corpo, naquele corpo, corpo-Teuda – do teatro brasileiro. Com essas histórias tão divertidas quanto tensas, tão inusitadas quanto corriqueiras, tão artisticamente superlativas quanto humanamente banais.

A beleza de uma vida-arte que gargalha e inspira gerações. Somente esse corpo-Teuda, somente essa vida-arte octogenária pode ser e dizer o que essa Luta é e diz. O privilégio e a beleza do envelhecimento, da maturidade, do viver (no plural, sempre no plural). Esse show é teu, Teuda, e teus são nossos corações. E a nossa (a minha) pieguice. A vida é curta demais para não sermos piegas, a vida é curta demais para não amarmos aquela que ali luta, que ali permanece, que ali vive. Menos a vida de Teuda, que é longa como a vida dos rios, das montanhas, do repertório do Galpão, longa como uma luta de mil assaltos, como um solilóquio de Shakespeare, como uma conversa boa ao redor da mesa, como a lista de palavrões da Dercy Gonçalves.

Nossa Senhora do Baseado, Teuda é entidade que repousa naquele palco e compartilha histórias, arriscando-se em cenas e vídeos e canções. Um palco caótico, bagunçado, repleto de objetos (uma máscara de lucha libre, uma perna-de-pau-fuzil, uma tiara de plumas, e muito mais), adereços e equipamentos e mais três pessoas que falam, se deslocam e fazem coisas e uma iluminação de ringue de lutas, um palco caoticamente bonito. Um texto caótico, bagunçado, com idas e vindas, que perde o fio da meada, que se suspende, que retoma, que flui, que flana, que improvisa, que é esquecido, que é soprado, que é lembrado, que é gargalhado, um texto bagunçadamente bonito. Uma encenação caótica, bagunçada, com mais diretores que elenco (3 a 1), com olhares/ações múltiplos e complementares, com atenção e comprometimento com o processo contínuo de criação, com desejo de fazer aflorar naquela luta toda a poesia daquela História, uma encenação bonita, muito bonita.

Os termos caos e a bagunça, aqui, não surgem de forma simplória ou pejorativa, em absoluto. Luta é daqueles trabalhos, afiados e irônicos, onde o caos e a bagunça são rigorosos, são matéria-prima e razão de ser, são linguagem. Poetizando o caos e a bagunça da própria vida, Luta afirma/demonstra que nem toda arte, nem todo teatro necessita ser perfeitamente preciso e elegante, nem todo cenário necessita ser limpo e minimalista, nem todo texto/roteiro precisa ser decorado e fingir que não é decorado, nem toda encenação precisa ser racionalmente decupável e justificável. Não sem alguma razão, certas pessoas da plateia podem se sentir um tanto frustradas com essa abordagem estética e profissional, digamos, não tão apolínea (para usar um termo caro ao teatro ocidental). Para essas pessoas, eu posso dizer tranquilamente: não se preocupe, o teatro é maior do que a perfeição técnica, a arte é maior do que os padrões do “bem-feito” e do “belo”, os encontros e os afetos que se estabeleceram naquela noite no Teatro Nelson Castro são maiores do que qualquer expectativa de um grande e apoteótico espetáculo. Nossa luta é maior do que tudo isso.

E é justamente nesse caos e bagunça que surge um dos elementos mais interessantes do trabalho: a atenção e o cuidado daquelas pessoas relativamente jovens para com aquela pessoa relativamente velha, e vice-versa. O cuidado com o levantar, com o sentar, com o deslocamento, o cuidado com o cansaço, com a respiração, com a memória, com o querer, com o sentir-se bem. Todes nós, sem exceção, precisamos de cuidado. E todes nós, sem exceção, deveríamos estar dispostes a cuidar. Cuidarmos uns des outres e, assim, cuidarmos de nós mesmes. No plural, sempre no plural. O teatro como um ato de cuidado, como um ato de amor. Quando há cuidado e amor, nenhuma luta é insuportável ou impossível. Teuda, Cléo, Marina, João, Marina (e toda a equipe de criação e produção) sabem e fazem isso. E isso é maior do que qualquer padrão ou virtuosismo técnico.

Encerro este texto (um texto-homenagem, por que não?) percebendo que, além de tudo, Luta é a primeira peça de teatro que eu vi que tem um “bis” para o público. Explico: em determinado momento do espetáculo, Teuda mostra diversos cartazes de outros espetáculos teatrais, alguns mais antigos, outros mais recentes, espalhando-os pelo palco. Ela comenta cada um deles, contando alguma história ou fato curioso evocado pelo papel. Ela lembra, com graça, a fala de um amigo: “A peça não precisa ser boa, mas o cartaz precisa. A peça passa, mas o cartaz fica!”. Pois bem: após a cena final do espetáculo, após as palmas da plateia e o acendimento das luzes de serviço, Teuda continua sentada no centro do palco, e retoma a conversa sobre os cartazes. Ela chama o público para se aproximar e manusear diretamente os materiais. A cada cartaz que a plateia pega e observa, ela conta algo sobre ele. E ri. O show recomeça, com uma cena já apresentada: um bis. E a peça recomeça e continua, viva como a vida dos rios, das montanhas, longa como uma luta de mil assaltos, como uma conversa boa ao redor da mesa, como a vida e a arte de Teuda Bara.

Me afasto e vou embora do teatro a contragosto, porque tenho outro compromisso na sequência. Mas sei que Teuda e a luta continuam lá e em todo lugar. Com cuidado, e com amor.

Olhar crítico de

HENRIQUE SAIDEL

obra

LUTA

Teuda Bara

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