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Habitando as fronteiras em/com ‘Corpomáquina’

CORPOMÁQUINA, do agrupamento artístico Robo.Art, de São José do Rio Preto, é daqueles trabalhos que se colocam arriscadamente na fronteira, e habitam plenamente a fronteira. Diferente do limite (em termos da Geografia), linha arbitrária que marca o fim de um território e o começo de outro, a fronteira é zona ampla e permeável de contato, convivência e influência mútua, a fronteira é aquele espaço transicional que divide mas, antes de tudo, une diferentes territórios (países, municípios, áreas comerciais, grupos, organismos, corpos, linguagens, conceitos). Fronteira é lugar de passagem, de fricção, de atravessamento, de contágio, de negociação, de relação – às vezes de afirmação, às vezes de negação. Mas também é lugar de paragem, de habitação, de exercício e invenção do estar e do conviver, lugar onde se é e não se é algo, simultaneamente. Estar na fronteira é estar em perigo – o perigo da desterritorialização, do aculturamento e da migração iminente, o perigo da rejeição e da extradição. Estar na fronteira é, também, estar a salvo – a salvo da abstração e do autoritarismo da pureza, do isolamento e da ignorância da língua e do alfabeto únicos, da mesmice de ser sempre só o que já se é e/ou o que se espera que se seja.

CORPOMÁQUINA habita a tríplice fronteira (já ricamente povoada) entre dança, performance art e tecnologias digitais. E também as fronteiras entre humano e máquina, orgânico e digital, natural e artificial, biológico e sintético, real e virtual, entre concreto e abstrato, explícito e sugerido, óbvio e misterioso, simples e complexo. Não há limites em CORPOMÁQUINA, apenas fronteiras, inquietamente habitadas e expandidas, entre-territórios entre-linguagens entre-corpos que se fundem e se confundem numa atmosfera obscura e densa de possibilidades.

Durante os 40 minutos da performance, a plateia é testemunha de um acontecimento poético e de forte impacto visual que emerge e depende da interação delicada entre o corpo-músculo-movimento do performer (Vinicius Francês) que flutua e dança, a estrutura piramidal metálica que suspende seu peso e o salva das exigências da gravidade, os numerosos sensores e longos fios acoplados em sua pele-etc, os equipamentos que captam e decodificam as suas movimentações, os computadores e softwares que mapeiam e produzem sua imagem-corpo-vídeo e seu som-corpo-música, o projetor de vídeo que lança suas luzes intensas e recortadas sobre o corpo-pele-branca do performer, as caixas de som que preenchem o espaço com suas batidas e vibrações, os operadores de som de vídeo e de luz que conduzem as interações e garantem o efeito. Integrados e fronteiriços, todos esses elementos formam um só corpo, um só ser performático que pulsa e se exibe e indaga, um só organismo-ciborgue no qual não é mais possível qualquer distinção ou hierarquia.

Apresentado, agora, em um formato mais “espetacular”, CORPOMÁQUINA já havia participado do FIT em 2019, em uma fase anterior de seu “work in progress”. Do espaço liminar e festivo do Graneleiro para espaço oficial e circunspecto do Teatro Municipal Nelson Castro, o trabalho concebido e dirigido por Vinicius Dall’acqua ganha novos contornos e contextos, novas estruturas e desdobramentos técnicos e conceituais. Uma criação rigorosa e milimetricamente calculada e executada, e que assume os riscos inerentes a toda convivência/dependência com as máquinas – esses seres eletrônicos falsamente precisos, tão imprevisíveis e falíveis quanto qualquer outro corpo no mundo.

Não à toa, a performance se inicia com um singelo mas necessário ritual: Elissa Pomponio (responsável pelo design, pela operação de video mapping e por parte da produção executiva do projeto) desenha o chão preto com uma branca e espessa e contínua linha de sal grosso, contornando uniformemente os elementos do cenário e, principalmente, todos os equipamentos elétricos e eletrônicos que compõem aquele corpo-fronteira. Encantamento que tenta afastar o mau olhado e clama pelo fechamento daquele corpo-performance contra possíveis falhas, o sal grosso é tecnologia das mais sofisticadas e ancestrais – elemento estético e espiritual que ninguém terá coragem de refutar.

Irônico e despretensioso, um pequeno brinquedo movido a pilha é acionado pelo performer-Vinicius: um macaquinho (?) de plástico laranja percorre sorrateiro o espaço do palco, caminhando frágil e ligeiro em quatro patas, até sumir pela coxia. Corpo-plástico, pequenino corpo-mecanismo que funciona e sorri, prólogo sutil e debochado que anuncia, ao mesmo tempo, a precariedade latente e a ludicidade potente que atravessa todo aquele aparato. Corpo-brinquedo que, junto com Eduardo Galeano, nos lembra que “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa”. Um corpomáquina que é, também, um corpofesta. Corpomáquinafesta.

Suspenso do chão pelo quadril e conectado a um sem-número de fios, Francês ocupa o centro da pirâmide, estrutura funcional que também carrega algum simbolismo alquímico-geométrico-monumental. Com as luzes apagadas, apenas o corpo branco muito branco do performer (vestido apenas com uma cueca ou sunga igualmente clara) permanece visível, sombra invertida mergulhada na escuridão. Aos poucos, o seu corpo se transforma em tela, superfície que recebe as linhas e cores e imagens projetadas pelo equipamento luminoso posicionado em frente ao palco, convicto e incisivo como um arqueiro diante do alvo. A projeção mapeada segue todos os mínimos deslocamentos do corpo-carne que se move e funde-se nele como uma tatuagem com vida própria, propondo outros contornos, estipulando outras cores e texturas, construindo outros formatos e volumetrias, ditando outros ritmos e batimentos. Corpo bidimensional, tridimensional, multidimensional. Corpo desumanizado, hiperumanizado, transumanizado. Corpo-tela-espelho-de-si-mesmo, corpo duplicado, rebatido, rabiscado, recoberto, implodido, pendurado, escavado, descoberto: corpo palimpsesto. Vinicius dança, o corpomáquina dança. Corpo experimento.

Nessa coreografia, nem tudo é concordância: em alguns momentos, o movimento do corpo-carne parece se adiantar infimamente ao movimento e ao recorte do corpo-projeção, como que fugindo arredio de algum tipo de captura, de algum destino implacável que a fronteira corpomáquina procura impor. Nem toda fusão, nem todo atravessamento é tranquilo ou sem resistência. Corpo que escapa, corpo-difícil, corpo-extraditado, corpo-ação cujo sal grosso não conseguiu fechar e proteger. Para os espectadores – que não dominam as minúcias do roteiro e da técnica desejada – tal fuga pode soar como defeito, como imprecisão tecnológica, mas também pode soar como efeito, como nuance de uma narrativa visual que se constrói nos detalhes. Na tarefa exigente de tatear os possíveis sentidos e significados da obra, o público vê tudo isso como parte indissociável desse grande dispositivo performático.

Trabalho em processo que não se pretende exaustivo ou terminado (o processo contínuo e não-findável é a marca e a beleza de investigações com essa envergadura), CORPOMÁQUINA é experimentação em aberto, com sua carne-veias-circuitos exposta e reeditável. Experimentação que por vezes se perde em uma espécie de deslumbramento auto-centrado pelas suas próprias qualidades técnicas e conceituais – e acaba se contentando mais com os achados em si (para si) e menos com as relações que eles podem proporcionar para com a plateia, essa parceira complicada e indispensável –, mas que se reencontra em cena, em performance, de forma forte e consistente. Interessante é tentar (e querer) imaginar que futuros caminhos-espaços-corpos esse ciborgue ainda vai percorrer, que futuras tecnologias vão se acoplar nesse novo ser, que futuras conexões ele ainda vai propor para seu público, que futuras fronteiras ele vai habitar e explorar. Que futuros. Corpomáquinainprogress.

(Foto: Victor Natureza)

Olhar crítico de

HENRIQUE SAIDEL

obra

CORPOMÁQUINA

Robo.Art

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