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Quem me naufraga é o mar – ‘Alegria de Náufragos’

Vivemos dias de luta, e, de vez em quando, é difícil, mas também dias de glória. São raros, esparsos, a gente fica até em dúvida quando acontece, mas nem só de resiliência se faz nosso caminho. A glória pode trazer conforto, a promessa de recompensa pelo esforço de viver. É um deslumbre, embalsamento do corpo em vida, nome inscrito em ouro numa calçada onde, ao invés de parar pra ler, admirar e exaltar títulos, feitos, conquistas, as pedestres certamente vão pisar em cima, talvez atrasadas pra algum compromisso, talvez ansiosas pra encontrar sua paixão ou enoveladas em desamor, talvez sentindo no peito pontadas de luto ou em estado de graça pelo nascimento de um neném, ou de uma cena, tantas e tantas emoções na inevitabilidade de nossos dias. É nessa poesia, a da enorme pequeneza de nossa vulgaridade, que o espetáculo Alegria de Náufragos, do Ser Tão Teatro, forja com mãos firmes um inspirador e contundente tributo ao poder do teatro.

Com beleza inquantificável, Cely Farias, Rafa Guedes e Thardelly Lima exaltam os recôncavos mais ensombreados de nós, seres humanos, a velejar crentes no embalo da maré. Uma hora naufragamos. Aceitar o inevitável parece simples, mas é tarefa de uma vida inteira. Como é bom poder viver pra encarar o imponderável. A morte: quando ela não é o oposto da vida, é porque ainda existe encantamento.

“O que importa nesse espetáculo não é a glória, mas a capacidade de suportar”, é uma das frases do texto, criado a partir do conto “Uma história enfadonha”, do dramaturgo russo Anton Tchékhov. Nele, o enredo gira em torno de Nicolai Stiepánovitch, um professor na Universidade de Medicina, alguém que dedicou sua vida à pesquisa científica, à docência, e, mais do que isso: às instituições, que lhe renderam honras e condecorações. Atingido por uma insônia insistente, ele começa a ver se anunciar o rumorejo da morte – ela, com suas unhas cumpridas que arranham quando querem fazer cócegas. Assim como todos os personagens da peça, Nicolai é representado por um elemento simples de figurino: no caso dele, um chapéu.

A atriz e os dois atores jogam com esses elementos em cena, trocando de personagens num ritmo ágil, deslocando-se atleticamente como narradores que não tem medo de público. Pelo contrário. Tem um prazer danado de nos envolver, nos abraçar, nos seduzir e nos esculhambar tudo na mesma cena. O ritmo é intenso, o humor é candente, não temos como deixar de nos abrir à leveza e à suavidade da trupe teatral, que só precisa do seu baú e do que lá dentro carrega pra nos transportar às profundezas de nossa banalidade. É um espetáculo que dá calor, que nos coloca em relação, pois a luz da plateia permanece a maior parte do tempo acesa, e, além de ver nossos companheires de público, também ouvimos suas risadas, que podem causar empatia, incômodo, aconchego – sentimentos que percorremos seguindo juntes o rumo do Ser Tão Teatro.

No início da peça o clima guarda o contorno russo do conto, ainda que já esteja totalmente devorado e deglutido pela atriz e os atores. Conhecemos o professor e sua família, seus colegas de trabalho, os estudantes pra quem ele dá aula, e Katia, a única por quem ele parece sentir interesse real. As personagens são trabalhadas na chave dos tipos, realçando uma característica de personalidade para revelar o patético de suas existências: uma não consegue parar de falar, o outro é tão burocrático que já não consegue mais discernir a realidade, outra é idealista e sonhadora, sempre falando sobre um lugar onde sua vida será melhor do que onde vive – e por aí vai.

Confesso que quando os homens começaram a representar as mulheres, quase achei que cairiam no deboche de machos. Sabemos que os estereótipos femininos muitas vezes se aproveitam de preconceitos em relação a nós pra arrancar riso fácil do público. Mas depois entendi que não. Todas as personagens são risíveis. Não tem uma que passa ilesa, e é nesse desmoronar de certezas que Alegria de Náufragos faz da comédia um ato poético-político de largas raízes. Sem incorrer no obscurantismo anticientífico nem aderir ao discurso golpista que ataca instituições democráticas, o grupo tece uma crítica à institucionalização do conhecimento, aprofundando o teor épico progressivamente ao longo da dramaturgia. O texto, aliás, foi criado conjuntamente pela atriz, os atores e os diretores, César Ferrario e Giordano Castro – assim como o desenho de luz, cuja assinatura também é do próprio grupo.

O compartilhamento da criação de boa parte das linguagens que compõe o espetáculo é coerente com a crítica à excessiva institucionalização dos saberes. As outras artistas que participam do processo são Maria Botelho na cenografia e adereços, Vilmara Georgina no figurino, Marco França na direção musical, Polly Barros na operação de som, José Hilton na operação de luz e produção. Esse modo colaborativo de criar e produzir mantém viva a tradição coletiva do teatro, peitando, assim, a falsa ilusão de que trabalhadoras do teatro – mesmo as famosas – são figuras iluminadas, chiques, ricas, soberbas, especiais e destituídas de fuleiragem. Por breves momentos em nossas vidas podemos até achar que sim, mas cedo ou tarde vem o naufrágio. Nosso ofício tem disso, ele é efêmero. Quem nos naufraga é o mar.

É a labuta de todo dia que mantém viva nossa arte e a memória de quem nos antecedeu. A certeza do naufrágio pode nos desanimar, mas, sendo traço inescapável do nosso trabalho, também pode ser enxergado com suavidade. Com alegria. Isso está cada vez mais difícil nos tempos que vivemos, pois está em curso um projeto fascista e violento que aparelha o Estado a fim de impedir a potência da cultura brasileira. Nesse mar revolto, a peça do Ser Tão Teatro ganha ainda mais pungência: sem melancolia, angústia ou ressentimento, é uma celebração da persistência em viver. Inclusive a nossa, artistas do teatro, que recebemos atrasado o pagamento de editais, nos submetemos à publicidade pra pagar contas, brigamos entre nós porque alguém faltou no ensaio etc. Além disso, ainda competimos com os fenômenos trash e passageiros da indústria cultural como Gusttavo Lima, banheira do Gugu, torta na cara etc., só pra mencionar alguns exemplos citados na vertigem dos jogos ágeis de Alegria de Náufragos.

Tudo isso surge com muita naturalidade no meio do enredo russo, e o público embarca tranquilamente no estranhamento do cânone. E não só o russo, mas de todo o castelo do teatro, inclusive Shakespeare, parodiado pela personagem Kátia, que representa um dos trechos mais conhecidos da Lady Macbeth, no texto Macbeth: “Sai, mancha maldita!”. Mas não há um pingo de grandiosidade nisso, muito ao contrário: é um instante de ridículo exposto ao extremo. A própria personagem depois percebe a verdade de sua representação: “Você não tem ideia do que é uma atriz estar em cena e perceber que está representando pessimamente”. Não é o caso da atriz e dos atores em Alegria de Náufragos, que têm precisão e ritmo únicos e não transmitem nem um grãozinho de arrogância ou vaidade em cena.

Talento de quem sabe narrar e comentar a narração e a narrativa. De quem não tem melindres em reconhecer o patético de si, sem, com isso, perder a acidez crítica. Em determinado momento, o grupo encarna estereótipos do que se construiu no Brasil como “teatro nordestino” (esqueci de comentar que o grupo é paraibano), por exemplo a exploração da corporeidade do Cavalo Marinho, ou Romeu e Julieta no sertão, ou Vau da Sarapalha, tudo em chave de deboche, mas sem prejuízo do rigor técnico. Assim, alarga-se a reflexão pra além da finitude das individualidades, colocando em atrito as definições exógenas que restringem identidades regionais a formas estéticas fixas. Além do existencial, que por si só já teria valor enorme, existe um sentido político aguçado na comicidade do Ser Tão Teatro.

(Foto: Victor Natureza)

Olhar crítico de

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obra

ALEGRIA DE NÁUFRAGOS

Grupo Ser Tão Teatro

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