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Ancestral viva na espiral do tempo – ‘Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui’

As engrenagens da violência, da exploração e do embrutecimento giram há séculos ininterruptamente no Brasil. O desenvolvimento tecnológico e os rearranjos do Estado, que, na ótica do pensamento evolucionista vigente em nossa sociedade, deveriam trazer prosperidade e melhoria nas condições de vida, de fato só criam formas atualizadas de matar e deixar morrer. Na necropolítica em que vivemos, a herança funesta da colonização e escravismo segue financiando catástrofes mui planejadas, vendidas como “acidentes”, “imprevistos”, “tragédias do acaso”. Balas perdidas, chacinas, desaparecimentos, até quando vamos viver ter que encarar a face do extermínio sem poder dizer seu verdadeiro nome? Racismo. Quantas vidas de jovens negros e negras terão que ser subtraídas pra que aconteça o enfrentamento à altura? Em mesa de debate no FIT, Onisajé leu um poema manifesto em que ventilava a imagem do cérebro cravado de búzios, imagem protesto em lugar de outra, o cérebro cravado de balas. Lamentavelmente, atrocidades como essa ainda são comuns nas notícias e no cotidiano do Brasil.

Na mesma mesa, Hilton Cobra lançou uma pergunta provocação: por que o povo negro não reage ao genocídio promovido pelo Estado brasileiro? Salloma Salomão acrescentou: não é só o povo negro que não reage, é toda a sociedade. Nós (neste momento falo em primeira pessoa, pois sou uma travesti branca) também devemos ter compromisso com o fim da política racista de extermínio e apagamento. O que falta pra passarmos a agir de forma mais combativa diante de tamanho descalabro? É no miolo ardente dessa ferida que o espetáculo Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui toca, sem rodeios nem tergiversações. O projeto é idealizado por Cyda Moreno, que interpreta a personagem histórica, alinhavando à sua história a narrativa de mães que perderam os filhos pra violência racial contemporânea.

Luiza Mahin é conhecida por ser mãe do advogado e escritor Luís Gama (1830-1882), um dos principais nomes na luta abolicionista brasileira. Nascido livre, foi vendido pelo próprio pai, escravizado e afastado da mãe. É o laço de parentesco interrompido que o espetáculo traz à tona, colocando a figura de Mahin em primeiro plano e saudando sua ancestralidade pra inspirar as mulheres negras a permanecerem de pé, em luta por humanidade, justiça, reparação histórica e direitos. Mas, apesar do tamanho incomensurável do trauma e da tragédia promovidos pela formação racista de nosso país, Luiza Mahin… Eu ainda continuo aqui não restringe suas personagens à dor e à falta, sendo esse um dos pontos de força da dramaturgia de Márcia Santos.

A primeira abordagem de Mahin em cena não é como mulher sofredora, nem escravizada, e nem mesmo alguém que vive em função de outro. Ela se apresenta em primeira pessoa como uma sujeita livre, plena e sabedora do valor incontestável de sua existência. Afirma-se em sua profissão de ganhadeira, comerciante de quitutes, e em seu conhecimento de leitura e escrita – isso numa época em que uma ínfima parcela da população era alfabetizada. A peça tem dimensão pedagógica mais que bem-vinda quando se trata da memória dos povos negros na diáspora. Assim como Mahin, em Salvador no século XIX outras pessoas negras também tinham conhecimento das letras: eram os malês, palavra que em iorubá significa muçulmano.

Pra ler o alcorão, eram alfabetizados em árabe, e, sequestrados em África, traziam consigo esse saber pro Brasil. As palavras não são apenas letras mortas em papéis. Elas são instrumentos de leitura e escrita do e no mundo, são modos de agir e interferir na ordem das coisas. Já dizia Paulo Freire: são palavras-mundo. E assim o sendo, no caso dos malês impulsionaram a Revolta dos Malês, uma das mais importantes insurreições da história brasileira, em que a escravidão e a imposição da religião católica foram combatidas. Um levante contra a indignidade e a desumanização, no qual Luiza Mahin teve participação destacada, firmando-se como agente política fundamental de seu tempo e símbolo da resistência dos povos explorados no mundo.

Da mesma forma, o texto do espetáculo Luiza Mahin… é inscrito em palavras-mundo, perspectivas das mulheres negras em gestos poéticos de enfrentamento à política de morte. Já disse Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. A interseccionalidade de raça, classe e gênero faz dela a outra do outro, com representatividade e reconhecimento diminuídos tanto nos movimentos históricos de trabalhadores quanto nos feministas e negros. O pulso de denúncia é forte e indispensável nesta peça, mas não a resume a uma única nota, visto que a poesia da música é tão pulsante quanto. Performada ao vivo por Regina Café, que também assina a trilha com Jorge Maya, a percussão, somada aos vocalizes e cantos das atrizes, instaura a dimensão de acalanto e afronte.

A necessidade da denúncia não chapa o texto e nem as personagens, transcriando em ato o compromisso ético com nosso tempo. O engajamento e a politização, no espetáculo, dignificam a dor, abrindo território simbólico de partilha dos sentimentos: a mãe que pega o filho no colo após seu nascimento e sente felicidade doída misturada ao medo de sua execução; a mãe que, depois de perder seu filho pra violência policial, precisa reaprender a falar, respirar, andar, viver; o cálculo de quantas horas por dia se vivia com a cria etc. Experiências emblemáticas que impulsionam o debate social pela via do sensível, não mantendo-o na linguagem de abstrações ou de quantidades acumuladas.

Dados e conceitos teóricos são instrumentos fundamentais pra análise, mas que, devido à despolitização insuflada na opinião pública atualmente, se dispostos de modo cru em cena, às vezes geram bloqueio em parte do público. Combinadas aos depoimentos das personagens, cada uma revelada a seu tempo sob a luz dos lustres vermelhos, as estatísticas ganham relevância e fundamentam reflexões sobre afetos, família, política, cidadania e violência de Estado, explicitada com apuro na fala: “eu sou uma mulher de favela, sou trabalhadora e pago meus impostos, e é por isso que eu sei que é o meu dinheiro que financia a farda, a viatura e bala dessa polícia que é paga pra nos proteger”.

O racismo da psique nacional (racismo por denegação, nas palavras de Lélia Gonzalez) é escancarado em seus efeitos devastadores na saúde mental das mulheres vitimadas pelo assassinato de seus filhos: “eles arrancam nossos filhos de nós e depois nos dão rivotril”. Em textos diretos e intensos, interpretados com maestria pelo elenco, percebem-se questões sociais encravadas entre presente e passado – espectros antigos entalados em nossa memória mutilada. Se pensarmos que, em 13 de maio de 1890, Ruy Barbosa, então Ministro da Fazenda, mandou queimar todos os documentos oficiais da escravidão, não é de se estranhar que pessoas decisivas no caminhar da história não tenham registros concretos sobre sua existência, seus feitos e seu legado.

Luiza Mahin é uma delas. Uma das falas finais da peça é sobre a ambiguidade de sua figura no correr dos séculos que a sucederam. Vingativa, sensual, rebelde, inteligente, maternal, ardilosa, várias versões da mesma mulher em diferentes perspectivas históricas. Ela mesma comenta que tem até gente que acha que ela não existiu. Num país em que o realismo tem muito de surreal, em que as elites gozam de fantasias incólumes sobre o terror e a miséria alheia, numa tradição literária que tem as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, como um de seus principais marcos, Mahin não é um fantasma, não carrega quimeras nem sarcasmos. Não. Ela é uma ancestral viva na espiral do tempo, evocação consciente da representação de todas as mulheres negras: “as ganhadeiras do meu tempo, as mães”, como diz a personagem.

Na música final, contraluz vermelha marcante compondo com o vermelho dos lustres e outros elementos do cenário e figurino, um raio de vida reluz na tempestade que liga o mundo dos mortos ao dos vivos: “respira, preta, que o vento que vem de dentro nunca para de ventar”.

(Foto: Jorge Etecheber)

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