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O avesso do hábito – ‘Vereda da Salvação’

Jorge Andrade completa cem anos de nascimento em 2022. O ofício da dramaturgia é desafiador, traz muitas alegrias, encontros gratificantes de imersão na alma humana e nas relações que a fazem criar raízes profundas a ponto de permanecer na história. Mas também tem seu lado ingrato, pois ao mesmo tempo que flerta com a memória e os vestígios do que pode parecer eterno (e nunca o será), também carrega o tempo todo um pisca-alerta: poderás cair no esquecimento – e o pior: ainda em vida. Não é o caso do dramaturgo nascido em Barretos, que tanto escreveu sobre a realidade do interior paulista. Mas, em se tratando de dramaturgia, nunca é tarde pra nos esquecerem. Nós, que já nos esquecemos de tantas outras pessoas, também estamos à mercê do projeto de desmonte e esvaziamento das políticas culturais em curso no Brasil atualmente.

Diante do rastro de devastação, tratemos da potência do presente, reapropriando-nos da memória. Nosso gesto de resistência é artístico. Assim permanecemos no tempo. A Cia. Beradeiro (São José do Rio Preto/SP) escolheu a peça Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, pra adentrar o cotidiano de trabalhadores rurais e investigar como condições de vida precarizadas criam terreno fértil pra promessas messiânicas de salvação, que manipulam a fé das pessoas a serviço de disputas de poder. O grupo busca realçar os aspectos coletivos e sociais da obra, não resumindo o realismo poético de Andrade apenas à esfera do drama. No espetáculo, somos convocadas a refletir sobre um assunto que está mais candente do que nunca: o fanatismo religioso – a exploração da moral e das crenças pra difundir ódio.  

Nesse caminho, a encenação de Fabiano Amigucci e Fagner Rodrigues propõe a construção coreografada de imagens coletivas, físicas, visuais e vocais onde a composição dos corpos e movimentos corais amplia o sentido de comunidade. Assim, se despertam percepções que entrelaçam a existência coletiva de trabalhadores rurais ao espírito colaborativo da cultura dos teatros de grupo. No elenco, há atrizes, atores e atrozes de diversas idades, etnias-racialidades e gêneros, cujas individualidades se diluem nos desenhos coletivos, sendo algumas personagens duplicadas, ao mesmo tempo representadas por duas pessoas, que se movimentam e falam ora juntas, ora alternadas, compondo com os corpos no espaço e expressando a dualidade íntima de cada ser.

A mim, parece que a personagem principal não é uma em particular, mas sim o coro, o que nos faz sentir no rosto o vento forte da tragédia. Vereda da Salvação foi escrita entre 1957 e 1963, após um episódio de fanatismo religioso ocorrido em Malacacheta, cidade de Minas Gerais. Crianças foram assassinadas, mulheres e homens espancados, cachorros e gatos mortos, tudo com a justificativa de que carregavam “o demônio no corpo”. O que poderia ter levado uma comunidade de 44 pessoas a tamanha violência contra os seus?

Jorge Andrade manteve os nomes das pessoas reais que viveram esse pico messiânico na comunidade de Catulé, em 1955: Manoel, Onofre, Artuliana etc. Não podemos dizer que é uma peça documental, até porque a incursão estética do dramaturgo segue por outro caminho. Ela pende mais para a linguagem da mimese dramática do que da apropriação de documentos em cena – a Cia. Beradeiro decidiu permanecer nessa vereda, a da mimese, ainda que a tensionando. Algumas cenas verticalizam a pesquisa da conjunção de corpos, criando imagens ambíguas, potentes, provocativas, como por exemplo quando uma mãe sacrifica a própria filha em cena engolindo-a de volta ao seu ventre. A linguagem das corpas em cena aponta caminhos pulsantes de construção cênica, fissurando o drama com a força de um vulcão prestes a entrar em erupção.

O cenário de Leo Bauab cria um clima expressionista e barroco com elementos que bebem da precariedade: madeiras estacadas em suportes, latas de metal pintadas em tons terrosos, e o palco todo recoberto de terra. É interessante observar como a arquitetura cênica, na Vereda da Salvação da Cia. Beradeiro, se apropria da rubrica descritiva de Andrade e a transcria, abrindo janelas de ressignificação: “Clareira no meio de uma mata. Árvores frondosas formam uma muralha em volta de um grupo de casebres de pau-a-pique. Os casebres, cobertos com folhas de indaiá, estão dispostos em semicírculo quebrado, sendo que um deles, o da direita, é isolado dos outros, formando uma passagem por onde se avista, mais longe, o tronco das árvores”. Dos elementos naturais destacados por Jorge Andrade, ficou a terra e a madeira, mas não a rugosa, dos troncos, e sim a lisa, retilínea, das tábuas e ripas.

O contexto rural atual tem explorações e precariedades tão absurdas quanto a que Vereda da Salvação nos apresenta na década de 1950, mas com outras configurações. Os tensionamentos físicos e visuais do ilusionismo promovidos pela Cia. Beradeiro são fendas abertas na estrutura dramática de Jorge Andrade – um movimento que tem o balanço de um pêndulo: às vezes pende mais pro drama, com personagens delineados, conflitos etc, e outras mais pra dança, até pra instalação, com ativação de relações entre corpas e arquitetura cênica. A cena final do espetáculo é emblemática nesse sentido, pois traz um acontecimento do texto – quando todes tiram as roupas, cantando, prestes a serem fuzilados, numa “súplica alucinada” – par e passo a uma irrupção de linguagem que necessariamente questiona a ilusão de personagens bem delimitadas.

O engajamento e disponibilidade corporal exigidos nesse momento alteram de tal forma o registro de representação que chegam a colocar a seguinte questão: Por que não são todes que embarcam na nudez completa? Quais critérios definiram quem tirava toda a roupa e quem não? – sem querer, com essas perguntas, incorrer num juízo moral, nem pra um lado nem pro outro. Ao assistir essa cena, transpassamos a linguagem da atuação dramática de uma forma que não temos como não nos perguntar: Quem são as pessoas “por detrás” das personagens? O que elas sentem? Que relação têm com o próprio corpo? Qual a relação entre elas? Como elas se organizam pra produzir esse espetáculo? Ou seja, entramos num outro terreno, do performativo e do colaborativo expostos, detonados a partir da situação proposta pela ficção de Vereda da Salvação, que por sua vez foi criado a partir de um acontecimento real.

Em 1955, em Catulé, as pessoas também tiraram as roupas. Mas ao contrário da comunidade de Malacacheta, a Cia. Beradeiro não dispõe da nudez como forma de súplica. A nudez, no espetáculo, não tem um caráter de delírio ou desespero. É uma escolha lúcida, consciente, um passo a mais na pesquisa de linguagem das corpas diversas se relacionando em cena. Um momento decisivo que vira a peça de Jorge Andrade pelo avesso do hábito.

(Foto: Victor Natureza)

Olhar crítico de

AVE TERRENA

obra

VEREDA DA SALVAÇÃO

Cia. Beradeiro

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