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‘Eunucos’, de Irmãs Brasil, e o convite ao reposicionamento de ser

A pesquisa das Irmãs Brasil sobre o eunuco é muito abrangente e é transversalizada pelas investidas do seu meio de origem, a cidade de Amparo (ou Desamparo, como se referem), no interior paulista, a partir da experiência social de supressão da sexualidade centrada na genitália.

Para eunucos havia a privação da vida sexual, o que para algumas filosofias como a hindu correspondia a ter uma existência inconclusa, já que um de seus vedas, livros do conhecimento sagrado, tem uma parte totalmente dedicada à elevação espiritual dominando os prazeres do corpo. Todavia, ser eunuco abrangia muitas outras finalidades, do desprezo ao prestígio, categoria que poderia ser determinada como punição, porém também objetivada como profissão. Há documentos desse exercício na civilização chinesa, na Dinastia Chou, no século 1050 antes da era Comum, onde a castração era uma penalidade contida nos códigos penais.

Dois séculos depois, os eunucos adquiriram consideração em algumas cortes interferindo em decisões de sucessão de imperadores. Segundo o historiador japonês Taisuke Mitamura, eram diferenciados e desempenhavam funções de carrasco, servidores públicos graduados, responsáveis, administradores, diplomatas, comandantes militares, dentre outras responsabilidades, desvelando-nos a complexidade dessa atividade. Também encontramos suas presenças no Oriente Médio, no Império Otomano, na Europa Oriental e no Norte da África.

Da Europa Ocidental vem o tipo de eunuco que é popularizado em nosso imaginário, que tinham a genitália extirpada ainda na infância com a finalidade de manter o timbre vocal inalterado. O historiador francês Patrick Barbier fala que os meninos eram recrutados entre camponeses com esse objetivo e que o mais popular entre os castrati foi Farinelli, o cantor de ópera mais bem-sucedido do século XVIII.

A interdição da sexualidade como castigo, privação, violência, emudecimento da liberdade de ser é o que interessa a Viní Ventania Xtravaganza e Vitória Jovem Xtravaganza na realização de Eunucos, primeiro trabalho em performance da dupla de artistas travestis na arte contemporânea.

De uma família na qual pai e tios formam uma trupe de palhaços de rodeio de sua cidade nativa, ainda que os homens da família não se reconheçam como performers, elas relatam ser essa a sua primeira vivência com a linguagem. O roteiro do que eles desenvolvem na arena de rodeios como a palhaçaria; os figurinos extremamente chamativos trabalhados em couro; a improvisação; a preparação são elementos que conformam a performatividade dessa atividade. Assim sendo, as Irmãs Brasil descendem e continuam o trabalho em performance dos Irmãos Brasil, nome original do grupo, redirecionando a abordagem.

Migrantes no Rio de Janeiro, elas se inscreveram num edital da ELAM, primeira Escola de Arte Livre da Maré, em 2019; e a partir desse processo criam Eunucos, que trata desse processo de castração histórico e físico que a sociedade ocidental contemporânea ainda pratica, considerando os aspectos políticos, mentais, emocionais, e, sobretudo, sexuais.

A carga autobiográfica de Eunucos é profunda, íntima, sensível porque é durante essa elaboração que elas conscientizaram-se de que a performance trata delas próprias no que tange às castrações mencionadas anteriormente. Segundo Viní e Vitória, o processo de transição a partir do qual hoje se reconhecem travestis ocorreu paralelamente às 22 apresentações de Eunucos. Tivemos a oportunidade de assistir a uma dessas exibições anteriores a apresentação ocorrida no FIT, e é perceptível que passados três anos de sua concepção, agora Eunucos incorpora uma intrincada reflexão sobre identidade de gênero e o (re)nascimento das Irmãs Brasil, bem como os movimentos corporais são aperfeiçoados. Portanto, se refere a duas pessoas que existiam internamente e que se permitem a ruptura com as convenções sociais castrativas para serem concebidas novamente.

Na performance, inicialmente escutamos o chamado taxativo do berrante, objeto relacionado às referências de infância, à cultura do boiadeiro, sendo o sinal que organiza a boiada e, neste caso, a plateia que se reúne para o inesperado. A verve animal sinalizada pela capturada das memórias pueris das Irmãs Brasil reaparece instintiva em outros momentos do trabalho.

As corpas nuas e reluzentes devido ao uso de um óleo, os cabelos-crinas, as unhas transparentes e “gliterizadas” são os únicos elementos que compõem o figurino.

Como animais num show de picadeiro, elas cavalgam circulando e reconhecendo o espaço como se tivessem sido soltas há poucos minutos, tal qual ocorre com animais de rodeio. Em seguida, rodopiam, rodopiam até caírem no chão como se esse tombar fosse a transição para a qualidade quadrúpede que assumem na sequência, no qual explorar o corpo alheio é um código de reconhecimento.

Revezam-se na condução dos corpos tendo no pênis um cabresto, estabelecendo uma relação de direcionamento, controle, contenção. Sobre duas ou quatro patas, circundam o campo cênico perfilhando a audiência via sentidos: olfato, visão, tato. A cena ativa uma sinergia que as conecta como que em estado de transe, de irracionalidade, no qual as sensações superpõem-se à racionabilidade.

Nessa situação animalesca as corporalidades passam a ser a única via comunicacional e a nudez é cada vez mais naturalizada, o seu impacto inicial é substituído pela apreensão da imprevisibilidade do instinto.  Aproximam-se e retraem-se das pessoas que acompanham a performance, por vezes cheiram, roçam, lambem. Odor, suor, saliva são fluidos que parte do público repele, enquanto a outra, conforme detectamos nos diálogos pós-apresentação, cobiça numa imersão e entrega à experiência e atmosfera criada.

O sexo passa a ser parte imensurável do mundo natural, uma vez que entre animais irracionais prescinde a moralidade castradora e a categorização dos contatos. A genitália aparece e desaparece por meio dos trejeitos corporais das artistas, que  exibem a versatilidade de seus corpos oscilando femininos-masculinos no ritmo do roteiro não ensaiado cujo rumo é o fluxo da excitação da plateia.

É um momento de transe pela crença, pela dimensão hipnótica que a performance impetra com a inclusão de uma musicalidade sirena que abre um portal mágico. Ao adentrarmos as profundezas da performance e nos depararmos com os movimentos de pernas juntas, de genitália oculta indicando-nos a relação com as sereias que encantam e que destroem a partir do desejo, articulamos essa passagem diretamente à natureza da transgeneridade. Ainda que a sereia não tenha sexo externo visível, as sabemos seres de potente feminilidade, talvez ferina em sua pureza, articulamos essa condição a das pessoas travestis.

O portal que Eunucos abre discute a pós-sexualidade, a possibilidade metafísica do fascínio, e como a moralidade nos aprisiona numa noção de perigo e/ou de pecado, que nos impede de explorarmos densamente, fisiologicamente, honradamente  a dádiva dos corpos como depositários de vontades, de percepções, de prazeres, de iluminações.

O que entendemos como escatológico, adequadamente é recolocado no lugar de materialidade corporal. A urina no centro do espaço performático ao final da apresentação é conexão com um lugar elegido espiritualmente; inconscientemente, se demarca esse sítio na performance e na existência.

A crucificação final que cinde o corpo com o vermelho do batom é a condenação do cerceamento, do enclausuramento do ser. Um enorme plástico translúcido e diáfano serve de apoio para o corpo que é martirizado e que ascende ao incógnito e ambicionado numa urgência de vida.

Eunucos é aparentemente sobre corporeidades, numa discussão que delata as violências da heteronormatividade compulsória. Entretanto, essa primeira leitura é simplista em relação a outras camadas que identificamos na obra e que nos levam para o conceito de pós-sexo, vislumbrando uma sexualidade próspera e plena de experiências. Temos sido castradas de viver o que o sexo como linguagem pode proporcionar a cada ser em contato com outro. Eunucos é mandinga ascendente que nos reposiciona no princípio, nos presenteia com o convite de restauro do devir dos nossos corpos bichos. Ano zero, pode recomeçar.

(Foto: Jorge Etecheber)

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

EUNUCOS

Irmãs Brasil

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