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‘Manifesto Transpofágico’ e o corpo-saber de Renata Carvalho

Generosidade como virtude em que a pessoa “se dispõe a sacrificar os próprios interesses em benefício de outrem” é o que vemos no monólogo Manifesto Transpofágico. Renata Carvalho desenvolve a sua dramaturgia e roteiro com direção e cenografia de Luiz Fernando Marques, o Lubi. É inevitável articularmos o título de seu texto com o Manifesto Antropofágico, do escritor Oswald de Andrade, de 1928, que nele critica a dependência cultural brasileira em relação às referências europeias e estadunidense.

Quase um século depois, Renata Carvalho se apropria dessa proximidade conceitual para ratificar que permanece conosco a mentalidade colonial no campo da cultura, que essa subsistência extrapola o pensamento sobre a arte e se expande para cultura como vivência da humanidade latino-americana.

No processo de invasão destas terras por povos europeus e do subsequente genocídio dos povos originários, epistemicídio, desterramento e escravização de populações africanas e indígenas jazia o estabelecimento de um sistema-mundo abalizado numa cosmovisão não compartilhada por esses povos. Entendendo, ou não, o cristianismo é uma cosmovisão que implica numa estrutura social que professa a criação do homem cisgênero heterossexual, e, a partir dele, da mulher cisgênera heterossexual, e a relação afetiva-sexual entre essas duas criaturas tem como finalidade única a procriação da raça humana, sendo difundida a reprovação de experiências com as corporalidades e sexualidades dissonantes.

É sabido que muitas populações compreendem as relações entre humanos a partir de outras cosmovisões que, inclusive, preveem tanto o relacionamento entre pessoas com a mesma conformação biológica quanto adequações dessa fisicalidade de acordo com outros entendimentos cosmológicos. Um exemplo inspirador é da etnia dagara, de Burkina Faso, que segundo a filósofa Sobonfu Somé, em seu necessário livro O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar, crê que pessoas com sexualidades dissidentes são “guardiães que vivem no limite entre dois mundos” e que na sua aldeia “todas as pessoas as respeitam, porque sem elas não haveria acesso a outros mundos”, e esses outros mundos enriquecem a sensibilidade humana.

Sendo assim, Manifesto Transpofágico reflete sobre a dependência não somente cultural, contudo cosmológica estabelecida como imperativa para a experiência comunitária humana nas sociedades cristãs sendo mediada pela moral e convenções de controle sobre o corpo-tabu. Essa autoridade da Igreja e do Estado sobre o que fazemos com nossos corpos-expropriados de nós é pedra fundante do Brasil e é exercida por meio de uma belicosidade que determina nosso devir.

O projeto de Brasil cristão abençoa o extermínio de seres humanos que não satisfazem a essa ficção, uma vez que as cosmologias, as mitologias, as religiões e as ideologias que controlam corpos que transitam pelo mundo, recordemos, são invenções humanas.

Dadas as aproximações entre os dois manifestos históricos, Manifesto Transpofágico tem no diálogo frontal com sua plateia o instrumento de sabotagem dos mecanismos que conservam as ficções de gênero na sociedade brasileira. O espetáculo tem início com o ambiente totalmente escuro e no palco uma fenda luminosa e vermelha, a caixa cênica. A palavra “Travesti” pisca na parte central superior do pano de fundo preto. Primeiro em amarelo. Renata Carvalho adentra o palco e apenas seu corpo está iluminado, a sua face não. Conforme ela, quando se é uma travesti, o que as pessoas observam, apontam, satirizam é o corpo como uma identidade, “seu corpo chega antes” da sua pessoa.  Informa-nos que mulher transgênera é uma condição de “higienização” do termo travesti e das adjetivações jocosas com as quais a sociedade o impregnou.

“Esse corpo é o corpo de uma travesti. Eu sou uma travesti”, aviso que a artista dá à plateia, seguido da recomendação de que esse é o momento para que se retirem as pessoas que assim quiserem, que o façam de forma segura.

Daqui por diante o corpo-travesti de Renata Carvalho protagoniza o que ela chama de “travaturgia”, a partir de uma transcestalidade.  A questão do gênero, se rosa ou azul conforme se alteram as cores da palavra travesti e segundo a genitália identificada nas crianças logo que nascem, é sublinhada pela atriz como determinante das expectativas em torno dos nossos futuros. É a partir dessa suposta previsibilidade de performance de gênero ajustada à genitália que Renata Carvalho confidencia à audiência os traumas causados pelas violências vividas durante sua infância, revelando a educação informal como danosa e guiada pela heterocisnormatividade compulsória.

Das expectativas em relação ao nome até a interdição das brincadeiras, seu texto falado, por vezes é gritado surpreendendo às pessoas e reproduzindo seus próprios sobressaltos enquanto criança ao perceber as supressões de possibilidades aparentemente banais e próprias da ingenuidade infantil como brincar com a boneca em vez de com o carrinho.

O performar uma masculinidade ou feminilidade projetada por outrem já na tenra idade é um tipo de abuso, uma vez que crianças nem sequer sabem o que é ser homem ou ser mulher de acordo com essa roteirização. Tornamo-nos homens, mulheres, negros, negras, travestis, porque é tudo desvelamento do que podemos ser.

Ao relatar a sua adolescência, já ciente dos seus enfrentamentos, nos deparamos com a hipocrisia, com o simular ser masculino como forma de evitar o confronto da família com a sua real identidade de gênero, como se pai e mãe não soubessem. Esse é, em geral, o fatídico momento de abandono e rejeição familiar e sua morte simbólica para os ex-seus e as ex-suas, como a atriz diz: “Somos veladas ainda vivas”. A performer nos traz o dado de que 90% das pessoas trans são expulsas muito jovens de suas casas, quando não morrem nas situações que as matam nas ruas.

Para cada cena-relato, Renata Carvalho cria binômios com a palavra corpo que alargam as implicações do ser pessoa travesti: corpo-frágil, corpo-afeminado, corpo-criança-viado, corpo-adolescente, corpo-Ricardinho, corpo-bicha, corpo-boiola, corpo-marica, corpo-gay, corpo-problema, corpo-incômodo, corpo-drag-queen, corpo-traficante, corpo-desacreditado, corpo-sem-Deus.

Apresenta o processo de adequação do seu corpo, “corpo-cubista montado por partes” – como ela diz citando Picasso –; expõe-nos a inquisição dos olhares das pessoas heterocisgêneras que tentam identificar aspectos relativos ao masculino em seu esbelto desenho corporal. Sobre essa modulação das corporalidades, o silicone industrial é explicitado como o material perigoso e de baixo custo do qual as travestis lançam mão para alcançar a sonhada silhueta curvilínea.

A projeção passa a apresentar fragmentos de documentários, entrevistas de programas de auditório, resultados de buscas em plataformas que vão dissecando a existência travestigênere e explicitando dores físicas, emocionais e psicológicas com as quais as travestis convivem para ser quem são. Seios e quadris / glúteos postos cirurgicamente são luxos.

Ao som de música eletrônica, as mesmas que tocam nas baladas, Renata Carvalho tensiona o discurso ao dizer o que todas as pessoas sabem: o corpo-abjeto é objeto de desejos abstrusos sustentados na clandestinidade das relações. Nesta parte da peça, a atriz tem ao seu redor uma espécie de vitrine que exibe seu corpo, encimado pela palavra “Privê”. 

As ruas e suas esquinas são os lugares nos quais a sociedade normatizou as presenças das mulheres trans, que vendem prazer obtido no consumo marginal de seus corpos, o mesmo consumo que no Carnaval tem permissividade da sociedade. Seu texto informa que se multiplicaram bailes carnavalescos a partir da década de 1960, nos quais as travestis que nas demais noites do ano se escondiam, tornaram-se as estrelas, exibindo beleza, exuberância, concomitantemente, saciando a cobiça profana pelo corpo travesti.

A atriz organiza uma historicidade travesti, remonta trajetórias na linha do tempo mencionando nomes daquelas que transpuseram a comunidade e se consagraram estrelas tanto dos bailes como nos jornais, revistas, emissoras de TV aberta, nos programas que a família tradicional brasileira acompanhava em horário nobre, nos sábados à tarde, nas noites de domingo.

Uma verdadeira relação esquizofrênica entre sociedade e as que dela foram banidas, porém, que podiam ser assistidas enquanto atração televisiva, para entretenimento como num freak show. São destacadas muitas dessas mulheres, como a pioneira Rogéria e a “mulher mais bonita do Brasil é homem” Roberta Close, que foi um verdadeiro fenômeno, especialmente devido à sua cirurgia de redesignação sexual.

Renata Carvalho relaciona essa falsa sensação de liberdade e de trânsito das travestis pela mídia à “cortina de fumaça” que desviava a atenção da população das brutalidades do regime ditatorial. Enquanto algumas travestis estavam na mídia popular, outras eram presas e agredidas nas ruas deliberadamente conformando uma perseguição estatal com o aval da população, especialmente após o surgimento da SIDA na década de 1980, que Renata Carvalho diz ser a concessão da “SIDAdania” às travestis.

A autorização à barbarização das travestis estava em curso, dentre os relatos de rua, o do PM que “atirava sempre no olho esquerdo das travestis pretas” delata que classe e raça culminam na perversa porcentagem de que 82% das travestis assassinadas são pretas. 

Brenda Lee é homenageada como a “anja da guarda” das travestis ao acolher aquelas que adoeceram devido à SIDA na Casa de Apoio Brenda Lee. O espetáculo é interrompido por duas vezes. Numa devido a um espectador que desfalece: o que pode ativar um corpo travesti que sabe? Foi socorrido e a encenação seguiu até a segunda pausa. Renata Carvalho nos informa até que ponto roteirizou a peça, mas daquela suspensão em diante, anda aparentemente com tranquilidade entre as fileiras de cadeiras onde a plateia tenta se ajeitar. Cabeças que viram com olhos que não encaram, pés que batem insistentemente no chão, pernas se mexem ritmada e nervosamente, mãos que transpiram.

O tensionamento reside no silêncio que traduz a ansiedade: quem o corpo-professora abordará para dar a resposta às suas perguntas que desnudam o preconceito devido às evasivas das respostas, mesmo que não haja resposta certa? Quais questões as pessoas permitirão insurgir publicamente revelando mais de quem indaga do que de quem é indagada?

Não existe resposta correta, todavia existe a ética, porém infelizmente não praticamos uma ética que considera a travestigeneridade como merecedora de deferência, então, nos escapam as elaborações de réplicas aceitáveis. A travesti está nua e ainda assim há quem não a veja em sua integridade.

Audre Lorde, mulher cisgênera, negra, lésbica, mãe solo, poeta, feminista interseccional e num relacionamento inter-racial com uma mulher branca, dizia não haver hierarquia de opressões, que temos que lutar contra todas simultaneamente.

Não temos como saldar minimamente nossa dívida histórica em relação às travestis, entretanto, podemos ombreá-las na ação por humanização das suas vidas a partir da representatividade nos muitos espaços que precisam ser ocupados com suas presenças e inteligências.

Renata Carvalho, corpo-saber, muito obrigada!

(Foto: Milena Áurea)

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

MANIFESTO TRANSPOFÁGICO

Renata Carvalho

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