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O inevitável do presente é o futuro, e das partes, o todo – ‘Azar do Valdemar’

Senhoras, senhores e senhorits, respeitável público leitor, agora vamos iniciar nossas meditações inenarráveis sobre um espetáculo retumbante, super lírico e colorido, mas também ácido e dilacerante, com máximo cuidado aos mínimos detalhes, envolvente, musical, apoteótico, estarrecedor, cômico, popular – é a criação da Cia. dos Inventivos, fenômeno de público nas paradas de sucesso em ruas, praças e avenidas brasileiras. É um acontecimento, uma intervenção política cênica, sem ser cínica, uma das peças mais charmosas, chavosas e cheias de chamego que vocês encontrarão nas esquinas do nosso teatro: o Azar do Valdemar! Orgulhosamente apresentada pelo FIT nas Praças Dom José Marcondes, Frei Duarte e Santa Apolônia, no Distrito de Engenheiro Schmitt – que é onde eu a assisti.

No dia dessa apresentação, estreia do grupo no festival, sete da noite o público ainda se reunia desconfiado, a maior parte olhando de longe, crianças, jovens, alguns pais querendo não parecer tão interessados, pessoas mais velhas, algumas que tinham acabado de sair da missa. Muita gente que foi se juntando e lotando as cadeiras, muretas e escadas em frente à igreja, em torno da van da Cia. dos Inventivos, chamada por eles de Oxum, onde se leem as frases “Cadê o Amarildo?”, “Quem mandou matar Marielle?”, entre outras. É nela (dentro dela, sobre ela, em volta dela etc.) que o espetáculo acontece. Os momentos de mudança de espaço, para trás ou para as laterais da van, exigiram do público uma participação intensa, organizados com a liderança dos erês, que o tempo todo dialogaram com os atores e a atriz do grupo.

O engajamento afetivo e crítico despertado por suas atuações nos proporcionou momentos inesquecíveis na dialética entre lirismo e conscientização social. Logo no início do texto, com dramaturgia de Jé Oliveira em processo colaborativo com o grupo, se lançam questões aparentemente simples, mas que nos desconcertam e rapidamente provocam respostas divergentes no público. Quem tem sorte? Quem tem azar? Será a vida uma cortina de ilusões? Ou a sorte e o azar que são ilusoriamente vendidos como frutos do acaso, mas na verdade são muito bem programados? Aos gritos de “sim”, “não”, “boa sorte, Valdemar”, conhecemos o personagem do título e sua família. Ele, um artista popular, que compõe versos para sua amada, em promessas e juras de amor, enquanto ela faz todo o trabalho da casa, cuida das crianças e chama a atenção dele para perceber mais o mundo ao seu redor.

Os debates sobre relações de poder estão em primeiro plano desde a cena inicial, nesse caso com enfoque para o aspecto de gênero, aliás desde antes dela, pois a própria van Oxum já escancara o posicionamento político do grupo na defesa da vida, da liberdade e do enfrentamento à necropolítica. Dessa forma, aos poucos conhecemos o interior da casa de Valdemar, um homem negro, com muitos sonhos, com certo idealismo, no alto da van. Sua canção é carismática, envolve o público numa atmosfera de encantamento e admiração, enquanto a mulher da casa, na altura do chão, no meio da gente, é a voz de consciência crítica, com frases como “muitos como nós são invisíveis” e “a vida é concreta, Valdemar!”, que parecem dialogar tanto com seu marido quanto com o público. Observamos essas contradições, postas na mesa logo de cara, e parece que vamos seguir acompanhando a jornada dessa família, negra e trabalhadora, que encara as agruras da vida, mas sem perder a poesia, a vitalidade e a alegria – ou, nos dizeres de Miró da Muribeca, o alegrismo.

Mas não. Num instante, um corte. Ele sai para comprar pão, ou procurar emprego, não se sabe exatamente, o que se sabe é que desaparece quando menos se imagina. No momento em que ele se torna ausência, nós ainda estávamos no embalo do ambiente lúdico e mambembe criado pelo grupo na Praça Santa Apolônia. Mas assim como Valdemar não teve chance de se defender, e Amarildos, Claudias, Marielles também não, não temos, nós do público, o tempo de se deixar levar por esse embalo, e num rasgo o espetáculo revela sua radicalidade na reinvenção do teatro épico engajado. Bebendo na fonte da dramaturgia circense, a Cia. dos Inventivos apresenta números, cenas curtas nas quais presenciamos a voracidade da esposa de Valdemar a procurá-lo por todo canto, até em hospitais e no IML, lamentando e, mais do que isso, transformando a dor em resistência. É dilacerante a cena em que ela clama pelo marido enquanto as crianças fazem algazarra. Ela não tem nem tempo de sofrer. Não temos como não nos perguntar: qual a chance que essa personagem tem de ser alguém em si, e não viver em função de um marido, de filhos?

Quase nenhuma, da mesma forma que muitas mulheres negras também não têm de serem vistas, ouvidas, valorizadas pelo seu trabalho, por quem são e pela sua história. A personagem interpretada por Aysha Nascimento desentranha esse grito de denúncia, traduzindo a realidade diretamente em forma cênica. Ela não encontra o marido, mas sim partes do corpo de Valdemar: um braço e uma perna de tamanho maior que o natural, trazidos à cena, e com muito cuidado e apuro, entregues ao público. Num misto de espanto, assombro e riso de nervoso, observamos e seguramos os pedaços do personagem que até pouco tempo atrás nos encantava em seu carisma e suas contradições.

Na América do Sul, as fantasias não são idílicas, elas flertam o tempo todo com o terror e sua devastação escancarada, pois não existe aqui a terra onde jorra leite e mel. A não ser para a elite dos poderosos, que não são retratados em Azar do Valdemar. O espetáculo nos remete à luta das Mães de Maio, ou das comunidades que enfrentam chacinas nas favelas do Rio de Janeiro, ou de familiares de mortos e desaparecidos da ditadura militar, ou ainda de tantos vitimados pela violência de Estado e pelo projeto de genocídio da população afroindígena, pobre, periférica. Um tema nevrálgico na compreensão da estrutura de nosso país, um lançar-se ao abismo da tragédia brasileira, mas sem incorrer em dogmas ou moralismo de frases feitas e palavras de ordem esvaziadas no contexto do teatro.

Cada palavra se preenche do sentido pleno de luta, peitando a polarização de mentira do Brasil 2022 e tomando um partido bem definido: a insurgência contra as injustiças sociais. Nesse sentido, é de enorme importância a escolha da direção, de Edgar Castro, de não nos privar da dúvida e da desconfiança por meio de números de mágica que promovem desaparecimentos, reaparecimentos, concursos de talentos, e outros histrionismos. Pelo deboche se revela a cortina de ilusões do Estado burguês edificado na colonização, na escravidão, no genocídio: por detrás da aparência de sorte ou azar se esconde o ovo da serpente do fascismo e do racismo.

O espetáculo se comunica de tal forma com o espaço público e as pessoas que o ocupam, que não tem como não experimentar um gosto de retomada. O território e o imaginário reapropriados por quem se reconhece nos fatos narrados, nas personagens apresentadas e no alumbramento que o teatro proporciona ao reunir comunidades. Saímos do espetáculo sem uma resolução ou apaziguamento dos conflitos deflagrados pelo desaparecimento súbito de alguém, mas sem que isso se transforme em paralisia, lamúria ou apatia. A Cia. dos Inventivos não nos oferece um escape alienante, mas um aterramento, um restabelecimento de forças pelo pertencimento a um todo maior que o contorno individual do meu corpo ou da minha rede social. Azar do Valdemar tem uma camada didática de tradição brechtiana, mas não é feito para as pessoas aprenderem passivamente ou purgarem as suas dores, ele acontece com as pessoas, no nervo das contradições, no riso que se transmuta ao longo da peça.

No final da apresentação, um homem visivelmente alterado se lançou à cena, subiu a escada correndo o risco de cair e se espatifar a olhos vistos, passou por cima de dois atores, da atriz, e se sentou em cima da van. Tão grande seu envolvimento, tão sem freios sua emoção que ele quis penetrar o espaço cênico, atropelando até o elenco, tropeçando nos fios e derrubando a luz e o som, que se apagaram na hora. Os cabos foram levados, mas, mesmo sem os microfones e a iluminação, a energia ficou, pois nessa altura o público todo já cantava “Valdemar há de voltar, há de voltar”, e sustentou o encerramento de Azar do Valdemar em sinergia linda com a Cia. dos Inventivos. É como diz o texto da peça: “o inevitável do presente é o futuro, e das partes, o todo / haja peito pra tanto coração”.

(Foto da capa: Marcos Madi)

Olhar crítico de

AVE TERRENA

obra

AZAR DO VALDEMAR

Cia dos Inventivos

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