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O teatro como contra-ataque da coletividade: ‘Somos todos Camilo!!’

O grupo colombiano Teatro La Candelaria, fundado em 1966, por Santiago García, tem quase a mesma idade do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. Sua presença no FIT de 2022 marca o retorno das atividades culturais presenciais com grande adesão de público, assim como La Candelaria e o FIT são presentes que celebram as artes cênicas em compromisso com aspectos históricos, sociais, políticos e formativos da e para a sociedade.

A trajetória do grupo teatral é marcada por etapas caracterizadas pelas diferentes formas de processos criativos desenvolvidos em coletividade. A primeira relacionada à sua sede na Casa da Cultura; a segunda marcada pela mudança para o bairro central de La Candelaria; a terceira concentrou-se nas criações coletivas; por fim, a quarta é chamada de Atores e Dramaturgos e incorporou a demanda de pessoas do elenco assumindo a autoria e direção.

A partir dessa realidade relacional mais horizontalizada entre componentes de La Candelaria, para a constituição dos seus espetáculos desenvolvem pesquisas que passam pela investigação de documentos oficiais e extraoficiais; pela consulta às fontes orais por meio de entrevistas; pela consideração das relações sociais impactadas pela história, política, economia, culturas. O interesse pela sociedade, por atores e atrizes sociais e suas atuações considerando as lutas e reivindicações de minorias políticas, são recuperados nas montagens por meio de um espelhamento estético fundado na elaboração de uma práxis autêntica do Teatro La Candelaria.

Foram dois cinquentenários, o do grupo teatral e o da morte do padre revolucionário Camilo Torres, que é rememorado e homenageado no espetáculo que leva seu nome, Camilo, na ocasião da estreia, em 2015. Se La Candelaria é uma referência para a história do teatro latino-americano devido à sua organicidade original já exposta, afirmamos o mesmo sobre Camilo Torres como um religioso-guerrilheiro que se envolveu nos combates por direitos da população colombiana.

Nascido em 1929, foi cofundador da Teologia da Libertação, corrente cristã que, dentre outras premissas, cria no cristianismo como instrumento de assistência e transformações no âmbito social em prol das camadas populacionais latino-americanas historicamente vulnerabilizadas e violentadas em consequência do projeto de invasão, expropriação, exploração e genocídio da Abya Yala, sendo como o povo Kuna, original do território colombiano, nomeia a América.

Camilo Torres foi um padre com acesso à educação ampla assentada nas humanidades, tendo estudado direito. Ordenado sacerdote em 1954, acreditava que a fé, mais do que um mecanismo litúrgico de controle, é um exercício cotidiano de complacência junto dos movimentos sociais com vistas à edificação de uma sociedade equânime. Na mesma década, em longa passagem pela Europa, teve contato com correntes cristãs que conscientemente utilizavam da posição privilegiada da Igreja com a finalidade de minimizar os abismos sociais entre ricos e pobres, como é o caso da Democracia Cristã parisiense.

Ao retornar para Bogotá, em 1960, foi um dos fundadores da primeira faculdade de sociologia da América Latina, e em 1965, trocou a sacerdócio pela revolução, a fim de converter o teórico amor cristão em uma prática do amor insurgente e comunitário.

Profundamente implicado nas organizações de ações políticas e contestatórias, como o Exercício da Libertação Nacional, um ano após deixar a batina, também deixou o povo colombiano em seu primeiro combate. Seus restos mortais foram enterrados em local não revelado para impedir o culto de sua figura.

A medida de ocultação de seu corpo não inviabilizou que a sua memória se agigantasse e ele visto como paladino nacional. Camilo, espetáculo de criação coletiva e dirigido por Patrícia Ariza, narra a saga heroica desse homem que enfrentou a poderosa Igreja e outras autoridades colombianas  para cumprir a cristianidade junto ao povo da Colômbia e da América Latina.

Na abertura do espetáculo a plateia é informada: “Somos todos Camilo!”. Com elenco composto por pessoas de diferentes faixas etárias e compleições físicas, o revezamento entre atrizes e atores na interpretação de Camilo é a metáfora do reconhecimento de que cada pessoa de cidadania colombiana traz em si o ímpeto libertário e progressista do padre-guerrilheiro. É sublinhado “que se a Igreja proíbe o sacerdócio às mulheres, contudo, no teatro elas também o encenam”, portanto, as atrizes também interpretam Camilo ao vestir a batina.

A materialidade corporal da heterogeneidade de pessoas do elenco é explorada brilhantemente por meio de movimentos coreografados com o apoio de discretos bancos. Observamos essa solução em muitas das cenas com a presença de clérigos. Em uma delas, aos poucos um dos padres aparece sem a batina e com peito desnudo e se transforma em Cristo assente no colo de uma das freiras que se torna a Nossa Senhora: tenham piedade!

As projeções fragmentadas de registros históricos de Camilo Torres, de manifestações, de detalhes arquitetônicos de catedrais como as rosáceas em vitral das imponentes igrejas bizantinas, são elementos que enriquem a compreensão da trajetória do homenageado bem como nos dimensiona as tensões entre Igreja, Povo, Estado, Oligarquia. Tudo assim em maiúscula como entidades titânicas em duelo na vida e no palco.

Camilo agracia vida, obra e pensamento de Camilo Torres, sem privilegiar protagonismos na encenação, propondo um palco democrático, ocupado concomitantemente por muitas pessoas do elenco durante todo espetáculo. Tem na musicalidade popular colombiana um de seus alicerces e nos regala com a oportunidade de apreciar o texto musicado. O mais velho cantando com mais jovem é parte da tradição musical colombiana evocada na peça. Em muitos momentos as transições de cena são mediadas por cantantes e identificamos referência às tertúlias que são encontros de música intergeracionais ocorridos nas casas.

La Candelaria assume as idiossincrasias que entrecortam a biografia de Camilo Torres acolhendo a sua humanidade e arrematando as passagens realistas com outras que são alegóricas, como a personagem trajada de branco, umas das primeiras em cena que ressurge em outros momentos. Ao voltar-se de costas para o público nos apresenta uma face que remete à Morte rondando as cenas do meio para o final da peça, um presságio.

Ao fim do espetáculo com o elenco cantando na frente do palco e sendo ovacionado pela plateia inebriada pela emoção suscitada pela montagem, atinamos ao fato de que a luta é verbo e que a peça se coaduna com o momento taxativo que enfrentamos no Brasil.

Relembramos da manhã no restaurante do hotel na qual avistamos pessoas numa mesa ampla que nos parecia muito uma família, talvez a passeio. Entretanto, era La Candelaria no seu desayuno que, apesar de chavão relacionado à prática teatral, nos transmite o espírito de comunidade, em verdade mais que isso, de unidade familiar, da grande família latino-americana que podemos ser reconhecendo nossa força nas muitas revoluções que compõem nossa história do âmbito profissional cultural à vida sangrada vivida.

Dia 25 de julho se comemora o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, e gostaríamos de parabenizar a Colômbia incansável nas curas das nossas veias abertas ao eleger a vice-presidenta Francia Márquez!

Somos Todas Marielle!

Somos Todos Camilo!

(Foto da capa: Victor Natureza)



Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

CAMILO

Teatro La Candelaria

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