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‘INSÔNIA – TITUS MACBETH’: VOLTAREMOS A DORMIR OUTRA VEZ?

  “A insônia se caracteriza pela incapacidade de conciliar o sono e pode manifestar-se em seu período inicial, intermediário ou final. A insônia pode ter causas orgânicas e psíquicas. Pesquisas apontam a produção inadequada de serotonina pelo organismo e o estresse provocado pelo desgaste cotidiano ou por situações-limite como causas mais importantes.”[1] O sono como ausência, como incapacidade de. O corpo em vigília, relutante e cansado, em um convicto, mas precário estado de alerta para agir em uma guerra – real ou imaginária, contra outros ou contra si – que não poderá vencer. A contradição e a inutilidade da vigília. Sono que recusa qualquer conciliação com a culpa, com o remorso, com o ódio, com a vontade de vingança, com o planejamento ardiloso e/ou as consequências imperiosas de uma ação disruptiva. São esses seres insones, que carregam pesados a gravidade de suas inconciliações, que recebem o público no Ginásio do Sesc Rio Preto, transformado em espaço cênico pleno de mistério e beleza.

Insônia – Titus Macbeth, do Estúdio Lusco Fusco (São Paulo), instala-se grandioso e grandiloquente, instaurando um espaço cênico imenso e enigmático, com o rigor e a poesia do cenário e dos figurinos de Simone Mina e da direção de André Guerreiro Lopes. A dramaturgia de Sérgio Roveri e do mesmo André evoca (ou melhor, invoca) duas das mais intrigantes e controversas peças de Shakespeare: Macbeth e Titus Andronicus, obras marcadas pela crueldade de seus personagens, pelo grafismo de suas cenas de violência, pelo impacto de suas ferozes disputas por poder e honra, e pela sequência de traições e vinganças que conduzem suas ações. É interessante que a dramaturgia de Shakespeare, clássico inevitável do teatro ocidental, também marque sua presença na programação de um festival tão diverso e atento aos “teatros do presente” quanto o FIT Rio Preto 2022.

A presença insistente e bem acordada dos clássicos. E a insônia que emerge do cruzamento inquietante dessas duas tragédias corporifica-se no ser coberto de pó que cambaleia semivivo com suas muletas/próteses de madeira retorcida – corpo eclipsado por uma poeira grossa e esbranquiçada que fecha os poros e desfigura qualquer humanidade, e espalha-se lentamente pelo ambiente, evaporando um suor e uma alma secas. Poeira venenosa que flutua e avisa: “Assim como Macbeth, aqui ninguém dormirá mais”.

Após cruzar por dentro o espaço da cena, percorrendo caminhos longos por entre objetos, luzes e atores, o público senta-se em cadeiras e almofadas dispostas ao redor da arena. Não há lugar privilegiado para o olhar: a plateia é convidada a negociar constantemente com as lonjuras e as proximidades do espaço e das movimentações do elenco (formado por Helena Ignez, Djin Sganzerla, André Guerreiro Lopes, Michele Matalon, Samuel Kavalerski e Carolina Amares), acostumando-se com as diferentes camadas e combinações visuais que se formam de acordo com a localização de cada olhar. Cada espectador vê um espetáculo. Diante de tal configuração, há que se manter constantemente acordado e alerta. Vigília.

Ao longo dos 90 minutos do espetáculo, uma sequência intrincada de cenas que, espalhadas cuidadosamente pelas diversas áreas do cenário, delimitam territórios, recortam tempos, estabelecem estados e relações imagéticas e simbólicas, e revelam, aos poucos, as aproximações e contradições entre Titus e Macbeth. Djin Sganzerla é Lady Macbeth vermelha nas roupas e no sangue nas mãos, é aquela que conduz os destinos, movida por seu desejo imoral e quase-utópico de poder. Helena Ignez é Titus tão imenso quanto a imensidão da madrugada do insone, é aquele que vinga a morte de seus filhos homens matando e cozinhando os filhos homens da assassina de seus filhos, movido pela inexorabilidade das guerras e dos anos. Personagens que vingam atrocidades cometendo mais atrocidades, em um sem-começo-sem-fim de violência e morte. Nem Lavínia, a filha estuprada e mutilada de Titus, escapa da desgraça de um mundo regido pela irracionalidade do machismo e do ódio: para vingar a própria honra (a única coisa com a qual realmente se importa), supostamente perdida no ato de violação de Lavínia, Titus mata a própria filha. Não há sono que se concilie com tamanha infâmia e desumanidade.

Nesse contexto complexo e virulento, o cenário é elemento fundamental da encenação, instalação que constrói composições visuais de forte impacto imagético, magnetizando os corpos do elenco, que transitam extáticos pelo espaço. O rigor e a força da imagem. Há beleza na radicalidade do ódio e da fatalidade que se materializa e escorre por aqueles objetos, aqueles materiais. Madeira, metal, sisal, rocha, água, sangue, luz. Pedaços de corpos (madeira? plástico?) espalham-se pelo espaço, carregados como troféus, como armas, como lembranças que perseguem quem não sonha: mãos, braços, pernas, cabeças, cabelos – destroços humanos que atestam o destroçamento da história. Permitiremos tal situação?

E se o tempo da tragédia é um tempo em suspenso, se a vida é suspensa pelo desvario da violência, então estão igualmente suspensos os objetos de cena, afastados do chão, flutuando imóveis pelo ar. Cadeiras, pirâmides-sinos, troncos e outros objetos suspensos por cordas e cabos compõem – junto com o ritmo das falas e das movimentações, junto com as distorções dos sons captados e ampliados pelos microfones – o tom cerimonioso, quase intangível, do espetáculo. Um espetáculo em suspenso. O próprio chão (a plataforma-palco dos mais terríveis banquetes e motins) também se desprende do chão da realidade e balança no ar, pêndulo que desliza livre e descomprometido com a gravidade da terra (e da Terra). Talvez o cenário, descolado da dureza chão, materialize poeticamente um certo descolamento e uma distância da peça em relação ao chão do mundo, em relação às questões concretas da vida no mundo. O deslocamento que a ficção teatral opera na vida cotidiana é levado à potência máxima por Insônia – Titus Macbeth, que se desloca rumo ao sem-chão da suspensão poética. As lonjuras e as ausências da ficção. Ao escapar do atrito do chão, é como se o espetáculo também optasse por não se friccionar diretamente com a realidade imediata e suas urgências e posicionamentos contemporâneos.

Insones, empoeirados, destroçados, sujos de sangue (do próprio e dos outros), os seres de Titus Macbeth vagam sem chão e sem rumo, fantasmas condenados a remoer a própria mesquinhez, disfarçada de busca altiva por poder e vingança. Ao som pungente dos sinos que anunciam o fim daquelas histórias e também do espetáculo, talvez a plateia se pergunte: voltaremos a dormir outra vez?

(Foto da capa: Vivian Gradela)


[1]     Fonte: <https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/insonia/>.

Olhar crítico de

HENRIQUE SAIDEL

obra

INSÔNIA - TITUS MACBETH

Estúdio Lusco Fusco

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