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Desconhece-te a ti mesma – ‘E.L.A.’

Ainda não dispomos de ferramentas suficientes pra entender o tamanho do estrago que os projetos da eugenia causaram em nós. Nem a nível das individualidades, e nem como sociedade. Mas sabemos que é enorme, descomunal. Só de pensarmos que teve e ainda tem gente que simplesmente por ser quem é, por ter nascido, por habitar o corpo que tem, vai presa, é escravizada, submetida a experimentos científicos como cobaia a ser analisada, torturada, assassinada… E não se trata de minorias, e nem só de identidades desviantes. Aliás, quem nos aponta como desvio é também atingido diretamente pelos efeitos das ideologias eugenistas que regulam ideais de beleza, saúde, e até mesmo da alegria, do sucesso e da própria condição de humanidade. Quem é que nesse mundo é considerado aberração e, portanto, supostamente pode ser sacrificado em nome de uma pretensa ciência?

Nos dias de hoje, lutamos pelas vacinas, defendemos a ciência frente ao misticismo messiânico que com suas fake news se promove populisticamente por meio da difamação e do ódio. Mas se pensarmos que o nazismo alemão usou a pesquisa científica pra desenvolver atrocidades como por exemplo câmaras de gás, e que médicos mutilaram todo e qualquer princípio ético ao injetar substâncias desconhecidas em pessoas marcadas para morrer, amputar partes de seus corpos, submetê-las a testes de esterilização etc… aí se bagunçam um pouco as noções dos limites e papéis que as ciências podem assumir. Mas antes disso não tem como não deixar de perguntar: por que essas pessoas estavam marcadas pra morrer?

Quem e por que foram consideradas criminosas, degeneradas, doentes, dissidentes, vadias, insanas, indignas de viver? Posso falar em primeira pessoa sobre esse assunto, pois eu seria uma delas. Nós, LGBTs em geral, e principalmente as pessoas trans e travestis, somos um dos grupos incluídos na política de morte da Alemanha de Hitler – e nas do Brasil de hoje. Também as pessoas negras, indígenas, ciganas, judias, e todas aquelas que não se enquadram no princípio falacioso da raça ariana – a própria difusão da ideia de raça está ligada ao projeto de controle, subjugação e extermínio populacional. Isso envolveu a ação efetiva de diversas ciências desde o século XIX, entre elas a medicina e a antropologia, como descreveu o professor Salloma Salomão em mesa de debate do FIT.

A discriminação desses dois marcadores de identidade – marcadores porque marca(va)m as pessoas pra morrer –, sexualidade (no meio disso, daquele jeito, incluída a identidade de gênero) e cor da pele, é conhecida na história e foi contestada por movimentos políticos expressivos no século XX. Que tenham tido alguma expressão, vale lembrar, não quer dizer que as coisas tenham mudado. Ainda estamos na batalha. Mas há um grupo que poucas vezes é lembrado, e que vive precariedades imensas e é incessantemente atacado em sua humanidade: as pessoas com deficiência. Deficiência não é doença, mas muita gente ainda trata como se fosse. Se hoje é assim, imagina na Alemanha nazista. Jéssica Teixeira, na peça E.L.A. nos ensina muito sobre isso.

Pra falar de apenas uma cena da peça precisei de quatro parágrafos. A capacidade de concisão da atriz, produtora e dramaturga é muito maior do que a minha, e essa é uma das mais notórias realizações estéticas do espetáculo: a elaboração de imagens-síntese milimetricamente precisas e belas. Beleza que se apropria do equilíbrio e da simetria pra escandalizar o Belo clássico e negar suas formas proporcionais, harmônicas, agradáveis, passíveis de serem desejadas. O padrão – a norma: eles ficam agonizando aos pés de Jéssica Teixeira, que transita pelo espaço cênico todo forrado de branco, revela camadas de figurinos, dança ao som de jazz, canta lindamente e, como rapsoda, costura trechos de textos de própria autoria a estudos de pesquisadores e documentos históricos e pessoais, incluindo aí tanto relatórios científicos quanto fotografias antigas e uma carta de sua mãe.

A peça joga com ambiguidades em várias camadas de significação, dando margem a apreensões múltiplas e diversificadas para o público de acordo com o conhecimento ou ignorância em relação à esclerose lateral amiotrófica, cuja sigla é E.L.A. A dramaturgia se sustenta sobre o paralelismo entre “ela” e “ele”, que dão a impressão ora de serem duas pessoas distintas, ora uma única cindida em partes, impedida de reconhecer-se na integridade do “eu”.  Pra quem não sabe o que é E.L.A, como eu por exemplo não sabia até assistir E.L.A., essa ambiguidade dá um tom instigante de estranhamento e até mesmo de mistério. São imagens-enigmas visuais e físicas, metáforas encarnadas que dialogam com camadas performativas e documentais em tratamento estético de grande apuro.

Inicialmente os figurinos dão à atriz uma movimentação rígida, como se fossem próteses de uma ciborgue, ou uma boneca de partes montadas. Imagem poderosíssima, que, como todo o pensamento visual do espetáculo, é um deslumbre: poesia e deleite, ambiente protegido onde as belezas não serão interditadas. A indumentária é dramaturgia fundamental em E.L.A., pois potencializa o trabalho corporal estonteante de Jéssica Teixeira. Em urdidura fina, a atriz-poeta-produtora narra dançando, dança narrando, intercalando poesia física a relatórios de cientistas que buscavam provar a inutilidade do corpo humano ao decompô-lo em substâncias químicas. Cálcio, fósforo, potássio, enxofre etc. Isolados, em poucas quantidades, não teriam nenhuma serventia.

O que é um corpo? O corpo é algo isolado de nosso ser? Perguntas filosóficas, questionamentos existenciais despertados dialeticamente pela dramaturgia de cena de E.L.A.. O elemento biográfico não vem necessariamente numa primeira pessoa confessional, como é comum vermos em peças que se utilizam do biodrama ou da autoficção, mas pela leitura de uma carta em que se relatam diversos episódios de negligência e violência médica pelos quais a mãe da atriz passou. A partir dessa narrativa, o jogo de identificações e estranhamentos se amplia ainda mais: qual o espelhamento que existe entre espaço cênico e público, entre a atriz e nós que a assistimos?

Em depoimento cênico pessoal, ela relata uma frase dita por sua mãe: “Você não tem dimensão do que é você estar viva aqui hoje”. Foram muitas provações impostas a ela e à sua mãe pela irracionalidade de seres escabrosos que se apropriam da razão científica pra desenvolver técnica de extermínio, adoecimento e precarização. Isso não é algo que atinge somente os corpos ditos dissidentes, mas o que acontece com a gente, com Jéssica de uma forma, comigo de outra, por ser caricatural em sua brutalidade, acaba oferecendo um espelho à sociedade. Ela amplia a frase, provocando o público: “Vocês não têm a dimensão do que é vocês estarem aqui vivos hoje”. Ao se reconhecer na humanidade das despossuídas de sua própria existência, das preteridas do próprio corpo, das condenadas da terra, passa a ser escolha de cada um de nós reagir ou permanecer no amortecimento. Pois essa pulsão de morte é implacável e não poupará ninguém pra fazer a engrenagem do capitalismo continuar a girar.

Pra que isso aconteça, suas peças precisam ser substituídas com frequência, pois os ideais de beleza e saúde, ilusórios e irreais que são, não se sustentam num mesmo corpo por muito tempo. Construções fictícias que precisam apagar seus rastros de fake continuamente, caso contrário perceberemos que são artificiais e forjados na aniquilação. Assim como o gênero, que, em E.L.A., é debatido interseccionalmente com a deficiência, evidenciando, na performatização de um trecho de Paul Preciado, como os corpos são rigorosamente regulados pela indústria fármaco-pornográfica no pós Segunda Guerra Mundial.

Na minha percepção, esse é um dos pontos decisivos deste espetáculo: não temos como sair dele sem levar pra casa uma questão. O que a experiência humana que vemos e vivenciamos com Jéssica Teixeira em E.L.A. diz sobre a experiência de cada uma de nós no público, e o que a nossa diz sobre a dE.L.A.? Quando a atriz diz que antes achava que só pessoas como ela eram fodidas, mas que depois percebeu que todo mundo ali também está fodido, entendemos que precisamos mesmo desconhecer muito do preconceito, do ódio e do recalque neurótico impostos sob o falso nome de ciência. A ciência não deveria dizer como os corpos devem ou não, podem ou não ser.

Mas estamos tão impregnados disso que não dá pra discernir precisamente qual o limite entre quem eu sou e as concepções que me formaram. Pra recriá-las, precisaremos desconhecer a nós mesmas. É Jéssica Teixeira quem sintetiza em uma frase esse dilema filosófico e psicanalítico, virando do avesso o aforismo inscrito no templo de Apolo, deus grego da Beleza, da Perfeição, da Harmonia do Equilíbrio e da Razão, tudo com maiúsculas. “Desconhece-te a ti mesma”, é o presente que E.L.A. nos oferece em sua rapsódia performativa.

(Foto da capa: Milena Áurea)

Olhar crítico de

AVE TERRENA

obra

E.L.A

Jéssica Teixeira

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