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OLHARES CRÍTICOS

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Notas sobre as maneiras de tocar em um assunto

Inicio, hoje, a tarefa deliciosa e sedutora, e ao mesmo tempo, desafiadora e impossível, de materializar em palavras-texto-publicação alguns dos meus olhares sobre-com-a partir das peças do FIT Rio Preto 2022. Com um detalhe importante: produzindo essas materializações nos calores da hora e publicando-as menos de 24h após ver os espetáculos. Uma espécie de polaroid instantânea que fotografa e revela (ou tenta revelar) o momento fugaz e polimorfo da fruição e do impacto artístico, em seus primeiros e brutos momentos. Na perplexidade radiante que tal tarefa me suscita, inicio lembrando que toda crítica, assim como toda arte, flerta constantemente com o fracasso. Mesmo que de forma não anunciada, a força e o apelo das artes cênicas (tanto para quem faz, quanto para quem frui, quanto para quem acompanha de longe) reside, em certa medida, na possibilidade concreta de tudo dar errado na hora, de fracassarmos, ali, na presença de todes, com todes. O fracasso ronda e, não raro, se instala. Em nossas obras, em nossas vidas. Conviver e criar com o fracasso é a nossa lida. A artista Cida Moreira, em conversa com a apresentadora Roberta Martinelli, ao ser perguntada sobre os eventuais fracassos de sua carreira e também sobre os fracassos da classe artística brasileira frente à pandemia de Covid-19 e outras desventuras atuais, anuncia que sim, ela já fracassou, todes nós temos fracassado, fracassamos toda hora, mas que “nossos fracassos são grandiosos!”. É assim, com a convicção da grandiosidade dos nossos fracassos, que inicio esta crítica. Fracassarei, evidentemente.

E, se todo início é, em última instância, um reinício – dado que na vida não há ato inaugural possível, não há ponto-zero identificável em nossas histórias –, inicio esta crítica com o testemunho de um reencontro: o (re)encontro com o teatro presencial, com a plateia cheia (!), com o espaço convivial compartilhado entre todes ali presentes, reencontro de corpos e de subjetividades, de pessoas se conhecendo e se reconhecendo depois de tanto tempo e tantas telas, reencontro com a alegria de estar e ser, juntes. Reencontrei-me com o teatro naquela plateia do Teatro do Sesc Rio Preto, vendo e sendo atravessado por 3 maneiras de tocar no assunto, espetáculo dirigido por Fabiano de Freitas, escrito e atuado por Leonardo Netto. Ainda me faltam palavras para verbalizar o que aconteceu ali. Mas tento. Tento entender o que me fez chorar diversas vezes naquela 1h20 de peça, que me calou fundo e que chacoalhou meu peito e todo meu corpo mesmo sem me mover na poltrona. Que tocou em tantos assuntos, mesmo falando de um assunto só. Que reverberou tantas vozes, mesmo sendo pronunciadas por um ator só.

Que assunto é esse, que precisa ser tocado de 3 maneiras e, ainda assim, permanece ausente do título? Um título que anuncia uma forma, uma metodologia (maneiras de), um modo de fazer que é plural (três), mas que se recusa a revelar fácil o objeto desse falar, desse tocar. Tocares. Talvez porque não haja palavra única para nomear esse assunto (não há palavra única para nomear a complexidade do mundo), embora ele necessite ser devidamente (re)nomeado e enfrentado enquanto tal: a homofobia, a LGBTfobia, o preconceito, o bullying, a agressividade, a violência, o trauma, a morte, o poder genocida da normatividade – e outros assuntos que podem se aproximar por analogia, como o racismo. A ausência no título, no entanto, é substituída por uma presença superlativa e inescapável, no palco. Presença radical que não permite fugas, subterfúgios ou qualquer enrolação que minimize a dureza e a urgência terrível do tema. Todos os elementos cênicos estão ali, afinados e articulados para não nos deixar escapar, para nos fazer tocar e mergulhar no assunto, para que ouçamos e nos ouçamos naquelas palavras, naquelas ações. Não há mais espaço nem desculpa para ausências.

Leonardo está sozinho em cena, naquela solidão teatral que é povoada por um sem-número de seres. A ficção teatral, aqui, é convocada para ampliar e matizar a ficção da própria vida: das histórias vividas e lembradas e recontadas, ampliando-se nas histórias imaginadas e igualmente vividas através da arte. Leonardo narra a si próprio – suas histórias, seus agressores, seus aliados, sua solidão, suas fraquezas, suas coragens, seus orgulhos –, narra outros personagens reais e imaginários que marcam sua existência bixa, e, fazendo tudo isso, narra a todes nós. Bixas ou não.

E aqui, uma nota importante: 3 maneiras de tocar no assunto, ao assuntar a homossexualidade e principalmente a homofobia, não é uma obra “apenas” para homossexuais. É também, e acima de tudo, uma obra para heterossexuais – homofóbicos ou potencialmente homofóbicos, conscientes ou não. É uma obra não apenas para quem sofre/sofreu bullying, mas para quem o pratica/praticou. É uma obra não apenas para quem é/foi oprimido ou agredido, mas para quem é/foi opressor ou agressor. Essa é a coragem e a beleza do espetáculo: chamar o agressor para a conversa, colocá-lo frente a frente com suas próprias contradições e atrocidades, e perguntar-lhe: “POR QUÊ?”. Chamá-lo para esse encontro e fazer com que a ficção-não-ficção do teatro opere, com sorte, alguma transformação. Talvez seja por isso que o assunto não aparece no título: para não espantar seu público-alvo, tão arredio a qualquer contato revelador consigo mesmo. Nota dentro da nota: como homem cis branco heterossexual classe média que sou, me sinto convocado a essa conversa, a essa pergunta em caps lock, rememorando de forma avassaladora tantas situações pessoais em que fui por vezes o agredido (me vendo no trecho em que Leonardo faz a lista: “[…] aquele que não é gay mas parece gay. Aquele que não é gay e não parece gay mas as pessoas acham que é gay […]”), por vezes o agressor (via omissão, mas não só). Talvez venha daí o meu choro, o meu corpo mexido. Fim da nota e da nota dentro da nota.

Na primeira maneira de tocar no assunto, anunciada na projeção ao fundo do palco (“o homem e o uniforme”), a narração, numa espécie de contação de histórias, enumera casos de bullying escolar e abre caminho para diversas possibilidades de identificação, por parte da plateia. Colocando-se, muitas vezes, na perspectiva do agressor, Leonardo expõe os mecanismos estruturais e as consequências reais das complexas violências que o ambiente da escola pode proporcionar. Difícil não se identificar com alguma das situações narradas, reavivando na mente e no corpo memórias da infância, esse período tão especial e, ao mesmo tempo, tão violento e traumático para quem sobrevive a ele. A bacia transparente com água, lugar da tortura, do desespero, da respiração e da vida interditadas pelo ódio dos portadores da norma. A infância como lugar de (re)início do ciclo de sofrimento e, também, de resistência e força.

Na segunda maneira, assume a narração uma personagem única (“o homem com a pedra na mão”), testemunha cúmplice ativa da Revolta de Stonewall (deflagrada nos Estados Unidos, em 1969). Também, aí, um (re)início de uma insurgência contundente e escandalosamente viva, que se espraiou em diversas ações e mobilizações que reverberam até hoje, em diferentes contextos. Na fala do homem, a importância dos lugares: da proibição de ser quem se é em espaços públicos hostis, à necessidade de criação e manutenção de espaços próprios de acolhimento e afeto. O lugar como garantidor da existência e da sobrevivência do sujeito e das subjetividades. É a revolução dos lugares, a expansão dos lugares de liberdade, através da luta e do enfrentamento, que materializa a revolução da sociedade e das pessoas que nela vivem. A disputa pelo território é simbólica, mas também iminentemente concreta. Quais pedras precisamos atirar? Quais janelas precisamos quebrar, para que todes possam ser como são e viver em paz?

Na terceira e última maneira de tocar no assunto, um parlamentar brasileiro (“o homem no congresso nacional”), representante eleito para a Câmara dos Deputados, único assumidamente gay, profere seu discurso para a plateia, convertida em plenário. Fragmentos de discursos reais do ex-deputado Jean Willys conclamam os interlocutores à reflexão e chamam atenção para a importância de que todes tenham voz nos parlamentos, de que toda a população (em toda a sua diversidade) seja devidamente representada nas diversas instâncias do poder. Que os sujeitos sejam protagonistas de sua própria história e de sua vida.

O espetáculo se encerra com a sonoplastia tomando o teatro e uma potente sequência de imagens midiáticas, projetadas no fundo do palco, com notícias, eventos e pessoas ligadas diretamente ao assunto. Leonardo não está mais sozinho em cena: ele nunca esteve. É assim que 3 maneiras de tocar no assunto expõe alguns de nossos mais cruéis fracassos como sociedade, como humanidade. Com a esperança de que encenar esses fracassos seja também fazer fracassar aquilo que deve, sim, ser ruído, ser implodido e fracassado através das nossas ações, pessoais e coletivas: a heteronormatividade, a masculinidade hegemônica (cis, branca, misógina, racista, classista, escravista), o patriarcado e todas as suas tecnologias de morte e dominação. Para que possamos ficar apenas com aqueles fracassos grandiosos que nos constituem e nos permitem ser o que somos. Para que possamos viver grandiosamente, e para que nunca mais deixemos de tocar nos assuntos.

(Foto da capa: Marcos Madi)

Olhar crítico de

HENRIQUE SAIDEL

obra

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