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‘Bola de fogo’ como tratado para o Tempo

Bola de fogo revisa um caminho pessoal que é compartilhado com a plateia desde o momento que Fábio Osório Monteiro entra em cena.

Acompanhamos o ator analisando seus propósitos de vida, especialmente voltados ao desafio do ofício cênico no Brasil, que são comentados conosco de forma bem trivial, pois que Fábio os menciona enquanto prepara a cena. De início, retira de uma quartinha de barro um maço de arruda e de akoko, erva de Xangô, orixá-rei da justiça, também conhecida como folha da fortuna, e asperge  seu público com essa água consagrada.

Ao som de Beyoncé, Run the World, gradativamente traz as caixas para “cuspir fogo”, ou seja, que contêm os ingredientes constituintes do acarajé, vai estendendo as toalhas de seu tabuleiro, mexendo a massa densa do bolinho que será frito em azeite de dendê candente, tal qual as mães, as tias, que desempenham os afazeres da cozinha enquanto confidenciam o cotidiano, que cantam e dançam paralelamente à organização de todo um mundo ao seu redor.

As intempéries técnicas da cena misturam-se às biográficas, e como na vida das baianas de tabuleiro, das mulheres-atlântidas que carregaram mundos, Fábio as contorna com a ginga e a sabedoria de quem tem intimidade com o contratempo. Ele é uma “baiana” filiada à ABAM, (Associação Nacional das Baianas de Acarajé), e se apresenta devidamente trajado/a com suas saias rodadas e anáguas engomadas, com seu turbante, numa vestimenta que converge a tradição portuguesa europeia e islâmica africana também fundantes da história e cultura de Salvador.

O texto-conversa percorre conhecimento histórico sobre as tradições de mulheres pretas da Bahia, azeitado pela pesquisa de Ana Maria Gonçalves (Um defeito de cor); o depoimento sobre a revelação da sua orientação sexual junto ao pai; o aprendizado da receita do acarajé que foi obtido por meio do acompanhamento de várias profissionais do tabuleiro que como boas griotas, contadoras de história, bibliotecas vivas, empregam a didática de estímulo à busca, de treino da observação.

Com o tempo a receita votiva que se popularizou como quitute de rua, porém que é dedicada à Iansã, uma das companheiras de Xangô, também senhor do fogo, é apreendida. Os sentidos são despertados e convocados nesse aprendizado no qual a “quantidade de ingredientes é medida pelo olho, a de sal pela boca, a do ponto da massa pelo esforço do braço”, parafraseando livremente o texto teatral.

Paralelamente ao bailado e aos causos, ritmados também pelo reggae de Edson Gomes, a baiana Fábio experimenta a temperatura do azeite de dendê na caçarola, e põe a fritar o primeiro bolinho de acarajé. O olfato é acordado e ocupa o ambiente.

O Tempo, inquice que em quicongo se escreve Kitembu, é invocado de inúmeras formas no transcorrer da performance nos reeducando em relação às expectativas de um roteiro linear: o tempo de preparo da receita; o tempo da coreografia-tradução que se realiza junto de Cíntia Santos – a tradutora de LIBRAS que o acompanha em cena –; o tempo da contação das histórias; o tempo da roupa da baiana que vai se africanizando mais e mais até se tornar apenas o saião na altura do peito, tal qual as vestes registradas nas fotografias de Pierre Fatumbi Verger, da década de 1960, realizadas no trânsito entre Benim e Salvador.

E por falarmos em (T)tempo, seja a cronologia como organização dos minutos, horas, dias, em conformidade com os eventos históricos; seja o deus relacionado à atmosfera, às tempestades, à elevação material e imaterial; quando inquerido por uma baiana sobre o lugar ocupado defronte a um importante instituto cultural em Salvador, “de quem você herdou esse ponto?”, demorou para que a baiana Fábio percebesse que o ponto ao qual se referiu a senhora, não era somente físico, também diz respeito aos encontros, desencontros e reencontros que as nossas ações no mundo visível promovem no invisível, e vice-versa.

Entre o coreografar, o cozinhar, o conversar com a plateia e com essa ancestralidade no decorrer do espetáculo, o primeiro bolinho de acarajé fica pronto e é assente em alguidar de barro. Em silêncio é depositado calmamente aos pés da maior árvore que guarda a traseira do espaço cênico para, em seguida, serem comercializadas as delícias preparadas pela baiana Fábio.

O espetáculo que, a princípio sinaliza uma farsa enquanto aproximação dos gêneros teatrais, se revela como um tratado da sobrelevação e da resistência fundamentadas nos saberes e fazeres herdados consciente e inconscientemente daquelas e daqueles que vieram antes e que nos amparam. Aciona a discussão sobre gênero, sobre a recriação de si a partir das tradições, congrega elementos da cultura pop/upular – como o boneco Hulk defronte à quartinha ou a Bey, já citada –, apresenta a Bola de fogo como nutrição da alma e do corpo que sustentou Fábio Osório Monteiro enquanto recurso financeiro, exercício artístico e, muito provavelmente, como devir.

(Foto da capa: Jorge Etecheber)

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

BOLA DE FOGO

Fábio Osório Monteiro

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