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‘[Histórias Encaixotadas]’ é um elogio à criatividade do Brasil: do modernismo ao lambe-lambe

O teatro de lambe-lambe é referendado nas caixas de fotografia de lambe-lambe difundidas por profissionais dessa linguagem do início ao meio do século XX, por meio das quais ofertavam seus serviços de registros de retratos em lugares públicos, como praças e parques. Esse gênero teatral, também conhecido como teatro de miniaturas, adota da fotografia de lambe-lambe a caixa preta e os espaços de sociabilidade nos quais são apresentados espetáculos de curta duração.

No processo de revelação da imagem registrada, profissionais de fotografia “lambiam” o negativo, daí advém o batismo dessa técnica com o nome lambe-lambe. Pessoas mais vividas, certamente guardam em suas memórias de infância e juventude a figura da caixa fotográfica montada sobre tripé e com pano preto para cobrir o corpo do profissional de fotografia, bem como a afluência de sua clientela que aguardava ansiosa pelo momento de ser eternizada, sendo essa uma situação prosaica desses espaços públicos aos finais de semana.

Essa recordação está no cerne da elaboração desse gênero teatral concebido pelas bonequeiras Denise di Santos e Ismine Lima, em 1989, que se valeram de um mundo miniaturizado e animado no interior das caixas pretas, que são manipulados e iluminados por aberturas nesse cubo. As apresentações são feitas para que apenas uma pessoa por vez assista à encenação e, no caso do teatro de lambe-lambe, o pano preto é colocado por cima de quem se apresenta e de quem assiste, proporcionando um ambiente escuro e adequado aos efeitos de luz e som empregados na atração.

‘[Histórias Encaixotadas]’ é um espetáculo desenvolvido e apresentado pelo grupo Varanda Teatro (São José do Rio Preto/SP), que conta com os lambelambistas Fernanda Missiaggia, João Duarte e Guilherme Hernandes, que também assina a direção artística. Cada lambelambista criou a sua caixa, acessórios, personagens, roteiros, porém trabalhando de modo colaborativo.

O Varanda Teatro tem se debruçado na história das artes visuais e pesquisado obras de arte emblemáticas para elaborar narrativas a partir das mesmas. Em ‘[Histórias Encaixotadas]’ são enfocadas obras modernistas, tais quais a pintura Abaporu, de 1923, de Tarsila do Amaral; O ladrão, sem data, xilogravura de Oswaldo Goeldi, e a pintura Guernica, de 1937, de Pablo Picasso.

O Abaporu, palavra originária do tupi que significa “homem que come gente”, na encenação aparece pronto para realizar uma refeição. Acompanhamos a personagem mais célebre do modernismo brasileiro nas artes visuais num momento cotidiano. Essa caixa de lambe-lambe é intitulada Tupi or not Tupi, uma das frases do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, e assim como nas outras duas caixas de teatro de lambe-lambe, anuncia os humores das situações das cenas por meio de rica sonorização e iluminação e sem falas das pequenas personagens.

Em Apenas um ladrão, inspirada na obra de Goeldi, nos deparamos com um homem que rouba um simples peixe destacado em vermelho, o perde e se depara com o mesmo flutuando, como se adquirisse autonomia, gerando uma aura sobrenatural. Já em A guerra, referendado na icônica pintura de Picasso que interpreta o bombardeio à cidade espanhola de Guernica pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial,  assistimos ao próprio pintor se preparando para executar sua obra-prima em meio aos estrondos ocasionados pelo ataque catastrófico.

Com um espetáculo para todas as idades, contudo, que atrai especialmente o curioso público de crianças, em poucos minutos Varanda Teatro aborda assuntos que estão presentes nas salas de aula no ano de comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, perpassa a subtração de alimentos da mesa das famílias brasileiras que já soma por volta de 33 milhões de pessoas que se deparam com a fome na atualidade, e menciona a relação existente entre a arte e política ao eleger para a caixa de lambe-lambe o processo criativo de Guernica, lembrando que está em curso em curso há mais 150 dias uma guerra entre dois países europeus.

A relação indissociável entre a arte e o que ocorre em seu tempo transparece nas três histórias com as quais Varanda Teatro nos contemplou em ‘[Histórias Encaixotadas]’. Ao mesmo tempo em que, numa tarde de sábado ensolarado, com o parque repleto de pessoas que se organizaram para se divertir entre os balanços, gangorras, piqueniques, e a descoberta da caixa de lambe-lambe, também pôs o público em contato com esse gênero teatral original do Brasil e que educa e encanta com sua delicadeza visual e potência narrativa na mesma proporção.

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

[HISTÓRIAS ENCAIXOTADAS] TEATRO LAMBE-LAMBE

Varanda Teatro

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