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Dançando e dançando ‘Looping: Bahia Overdub’

Fazia muito tempo que eu queria dançar Looping: Bahia Overdub. Desde que fiquei sabendo que Felipe de Assis, Rita Aquino e Leonardo França estavam criando o trabalho, junto com outras pessoas, lá em 2016. Desde que ouvi os burburinhos de quem tinha dançado em alguma das apresentações no Rio de Janeiro, em Salvador, em Curitiba e outros tantos lugares Brasil afora. Desde que li as palavras atentas de Ivana Menna Barreto, no site “Questão de Crítica”. Desde que dancei o texto inFestado de Clóvis Domingos, no site “Horizonte da Cena”. Desde que perdi a apresentação que fizeram em Porto Alegre, quase ao lado da minha casa. Desde que pisei pela primeira vez e todas as outras vezes em terras soteropolitanas e a Bahia me dançou.

Esta é uma crítica que dança. Porque, parafraseando o Zaratustra de Nietzsche, eu só poderia acreditar em uma crítica que soubesse dançar. Uma crítica que dança é uma crítica com o corpo, uma crítica que tem/é um corpo. Não uma crítica de um olho e um intelecto abstrato, neutro e impessoal, mas uma crítica de um olho e um intelecto do/no corpo, na carne e nas forças (e fraquezas) deste corpo específico que digita este texto no computador, numa tarde de domingo, em quarto de hotel pago pelo festival. Não há nada de novo aí: a impessoalidade e a universalidade da crítica sempre foi uma premissa falsa e perniciosa, tentando disfarçar e, ao mesmo tempo, hipervalorizar o ponto de vista hegemônico (quase sempre masculino, branco, cis, heterossexual, erudito), numa ilusão de objetividade e lei. Uma crítica que dança sabe-se singular e localizada, pois sabe-se e mostra-se corpo, matéria, chão, movimento. Contra a mentira e o autoritarismo da neutralidade e da universalidade. Uma dança contra a tristeza da norma.

Dentro do amplo e belo espaço do Graneleiro (registro, aqui, um elogio a essas arquiteturas que se abrem e acolhem os espaços e os tempos, estimulando os movimentos e as coexistências humanas), a música soa em volume alto, as luzes piscam e colorem a estrutura do prédio, pessoas compram bebidas nos bares instalados nas extremidades, e outras pessoas dançam na pista que se abre. Em uma grande área abaixo de pequenas lâmpadas penduradas, bailarines se aquecem, dançando despretensiosamente entre a multidão. Cumprimento a todes, e aguardo alegre o início do espetáculo. A música não para. Ninguém para. Felipe agora é o DJ, com sua camisa colorida perfeitamente abotoada. E então, a batida começa. Looping.

No ritmo quase-hipnótico do dub, os corpos se reorganizam. Braços dados, ombro a ombro, bailarines percorrem o espaço, com passos animados e cadenciados. Aos poucos, seus corpos/movimentos convidam e incluem os corpos daqueles que, até então, poderíamos chamar de “plateia”. Grupos vão surgindo e percorrendo o espaço – corpos ladeando corpos, braços dados, ombro a ombro, passos cadenciados – conduzidos pela ação do elenco. O ritmo se intensifica, os grupos vão aumentando, incluindo cada vez mais pessoas, e vão se dividindo. Em seu deslocamento empolgado pelo espaço, os grupos se encontram, se chocam, se afastam, giram, se rompem, se recompõem, se misturam, somem, reaparecem, e seguem. Olhares se cruzam, rostos se iluminam, gritos e gargalhadas se propagam. Desde logo, danço junto com essa multidão de corpos, misturado e comovido. Não há mais separação visível entre elenco e plateia: auto-organizados, dinâmicos, muitos grupos não possuem nenhum bailarine em sua formação. Todes dançam, numa coreografia pulsante que transforma o espaço num campo de batalha festiva, numa arena frenética de relação, de encontro intenso e fugaz. Alegria. Uma dança-enfrentamento que enfrenta a frieza da impessoalidade e a tristeza do individualismo.

Seria inútil descrever a sequência exata dos acontecimentos e das coreografias. O tempo ali é o tempo do looping, tempo espiralado onde tudo rodopia e urge. E grita. Grito que emerge dos corpos mobilizados, dos corpos prontos e sempre prontos para a emergência da vida. Corpos que giram. Gira de corpos que caem e se levantam e giram e não temem o chão. Não há porque temer o chão. Pequenas caixas de som surgem, com seus longos cabos que riscam o chão. Não há porque temer. Caixas de som com seus LEDs que se acendem, formando inúmeros triângulos (botões de “play”? ou “rew”?) que iluminam a cena já sem os corpos-plateia, afastados temporariamente do centro do espaço. Engatinhando em uma anti-corrida lenta e tenaz, o elenco adensa o tempo, e o arrasta pelo chão que baila.

Esta é uma crítica que dança. Uma crítica que dança, que bebe cerveja e que vai ao banheiro durante a peça. E que volta para dançar. Uma crítica que bebe o cravinho (infusão de cachaça e cravo-da-índia, produzida e vendida pelo imperdível bar O Cravinho, um clássico do Terreiro de Jesus, no centro da capital baiana) distribuído em garrafinhas pelo artista que as carrega em uma caixa de isopor. Festa de rua. Uma crítica que percebe parte da plateia um tanto confusa e dispersa, e uma parte da plateia interessada e que chama a atenção de quem se distrai: “Olha lá, vocês não estão prestando atenção!”. Uma crítica que, no meio daquilo tudo, ainda tenta fazer anotações coerentes em seu caderninho de bolso. Anotações que são devidamente interrompidas por um bailarine que se aproxima e inicia um provocativo strip-tease, bem na sua frente. A pista é tomada por bailarines que tiram seus casacos e camisetas, se aproximam de algumas pessoas, e as levam para dançar. Esta é uma crítica que dança languidamente abraçada com o elenco e outras pessoas da plateia, corpos suados e exclamados que rebolam e circulam pelo espaço. Não há porque temer o chão.

No espiralar do tempo, os grupos de braços dados ombro a ombro retornam e repercorrem o espaço. As caixas de som reapontam suas setas e seu som polifônico, carregadas vividamente por bailarines ágeis. O DJ comanda o som, falando ao microfone e mandando seu recado. E a dança segue, e a vida segue. Looping: Bahia Overdub é acontecimento, é levante, é resistência festiva contra a caretice da arte e do mundo. É exercício irrefreável de coletividade, de comunidade, de solidariedade e prontidão. Despretensioso como uma festa, provocativo como um flerte, contundente como cutucão.

Houve um momento em que os artistas pararam e agradeceram o aplauso da plateia, indicando o fim da apresentação. Mas carrego comigo a intuição de que aquilo foi mais uma parte dessa grande coreografia, desse grande looping que faz tudo retornar, sempre retornar, mas sempre diferente. Espiralar. Parte dessa grande coreografia que é a vida, que somos nós. Esta crítica é uma crítica que continua e continuará dançando Looping: Bahia Overdub. Dancemos, pois.

(Foto da capa: Milena Áurea)

Olhar crítico de

HENRIQUE SAIDEL

obra

LOOPING: BAHIA OVERDUB

7Oito Produções

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