Este texto é uma homenagem às cantoras e cantores, compositores, ritmistas, cantadores e cantadeiras brasileiras, que, assim como Flora Mourão, a rainha que gestou, criou, educou, versou e letrou o rei do ritmo, Jackson do Pandeiro, não tiveram devido reconhecimento na cultura do nosso país ao tamanho de seu talento e enormidade de suas criações, de sua história e seu legado poético e político.
Quem nos inspira e nos ensina essa homenagem é o espetáculo Jacksons do Pandeiro, da companhia Barca dos Corações Partidos, que inscreveu um momento lindo no teatro, acertando em cheio nosso peito ferido e não cicatrizado, nos fazendo sorrir, chorar, reunir forças conjuntamente e reviver, no encontro da multidão presencial, um presente radical. Três mil pessoas se reuniram correndo pra pegar o melhor lugar, ou atrasadas, brigando pra ver quem consegue guardar um pedaço de banco, carregando capacete nas mãos, vindas de cidades próximas e distantes, dando a mão pras crianças não correrem, entre vendedores de amendoim, pipocas, drinks, o verdadeiro teatro de estádio. Tudo pra presenciar, participar e celebrar a arte, a cultura, a poesia, a beleza, o enfrentamento da indignidade que os tiranos e fascistas de plantão querem enfiar goela abaixo da gente. Aqui, não.
Um musical brasileiro num anfiteatro, palavra da Grécia Antiga, aquela que aprendemos ser a origem do teatro, mas que, vale lembrar, como muitas outras palavras, saberes e tecnologias clássicas, provavelmente tem raízes no Egito Antigo e, portanto, africanas e negras. Além de nos guiar na maré das memórias de Jackson do Pandeiro e das pessoas com quem ele conviveu e construiu seu trabalho, além da atriz e dos atores compartilharem seus depoimentos pessoais tecidos à vida do mestre homenageado, o espetáculo também provoca o público a questionar aspectos profundos da identidade brasileira. Entre eles, inclusive a própria definição do gênero ao qual a Barca dos Corações Partidos se filia, o teatro musical.
Muitas vezes, ainda um gênero dominado por reproduções de referenciais estrangeiros em pleno Brasil, cuja tradição musical é vasta, imensa, popular e cravada na história em gestos de levante, reinvenção de mundos e resistência ao genocídio, à escravidão, ao racismo e ao Estado de terror e extermínio no qual ainda vivemos, cada vez mais conflagrados. O espetáculo que abriu o FIT Rio Preto 2022 demarca a enormidade da memória e a força presente do festival depois de um duro período de quarentena, em afronte de força e boniteza, do viver em coletividade afetiva e celebratória. No musical brasileiro, os intérpretes não só cantam e dançam, mas tocam o tempo todo com o corpo inteiro diversos instrumentos, inclusive as estruturas metálicas do cenário. A exaltação do ritmo, da pausa e do silêncio que parecem calar fundo, mas que se retomam no ponto certo, os passos de quem cai e se levanta, a levada do coco, do forró, do baião, do samba e tantos outros ritmos são, na peça, apontados em uma de suas dimensões mais encantadoras e ainda muito ocultas na oficialidade da história brasileira: a ancestralidade.
PAUSA
Uma cena que me surpreendeu foi aquela em que dois atores representam um casal a partir da música A mulher que virou homem, em que um homem cisgênero narra o processo de percepção e afirmação do gênero de seu companheiro, João, uma pessoa transmasculina. O debate sobre sexualidades e identidades de gênero divergentes não é central no espetáculo, até porque também não o é na obra de Jackson do Pandeiro, mas isso não quer dizer que não exista. Está aí pra provar a delicadeza e cuidado na provocação dessa cena, que poderia facilmente incorrer num lugar de deboche. Entendendo o contexto em que a letra foi composta, a Barca consegue transcriá-la chamando atenção pro amor que existe entre esses dois homens. Se existe mágoa, não é de um com o outro, mas com o mundo ao redor, que aponta insistentemente “o marido da mulher que virou homem”, em dizeres populares que banalizam a transfobia estrutural, atingindo tanto nós pessoas trans e travestis quanto nossos companheiros, familiares etc. Essa cena, somada às de chamego e despedidas, em que revivemos nossos amores através dos narrados pelos Jacksons em cena, dilacerou e revigorou esta travesti que vos escreve.
RETOMAMOS SEM PERDER A BATIDA
A dramaturgia de Bráulio Tavares e Eduardo Rios é incisiva em destacar Flora Mourão, mãe de Jackson do Pandeiro, como a responsável por alfabetizar seu filho nas artes musicais, mesmo não sabendo ler e escrever as letras num papel. Como diz o próprio texto, a música é um DOM e um BEM: Dom Oculto de Mainha e Benção Encantada de Mainha. Ao refletir sobre os Congados, Leda Maria Martins nos diz que é possível escrever de muitas formas: o teatro também se faz na rua, em ritos, danças e cantos tradicionais da cultura afrodiaspórica no Brasil, e nesse teatro do sagrado os desenhos formados pelas contas, sementes e conchas costuradas às roupas também são palavras, sendo assim o corpo também superfície de texto. Da mesma forma, o som, a batucada e as percussões dos ritmos tradicionais de matriz africana e de povos originários das Américas também são textos e formam suas sintaxes.
Tecnologias de performances festivas que reafirmam a sobrevivência e a transmutam em cura coletiva através do lúdico. Teatro que não ignora os sentimentos dos corações esmigalhados, e que, como diz Judson Cabral, não anula o lúdico na intenção de efeitos imediatos de gozo ou redenção individual, como quer a sociedade utilitarista neoliberal. A palavra poética como pulsação de vida ante a opressão e ao pacto de violência que fundou nosso país: é nesse campo que a Barca dos Corações Partidos nos encontra, de forma espetacular, comercial, acessível, invocando o coco no lugar do oco e do desamparo de nossos tempos nefastos. Jacksons do Pandeiro envolve intérpretes e público num mesmo circuito de potência e poder: são palavras proferidas e cantadas que enaltecem a grafia da performance no corpo que toca, canta, pausa e não perde o pulso.
O corpo como portal de sabedoria, representado em vida e obra do personagem histórico, artista, trabalhador da cultura multifacetado e representativo: José Gomes Filho – que, como a peça narra, chegou a se nomear Zé Jack do Pandeiro no início de sua carreira, mas ficou “Jackson por inteiro”. A Barca dos Corações Partidos faz emergir essa pessoa por inteiro, tecida de memória, fazendo memória e a entrelaçando à história de vida do elenco, que honra seu talento com performance exímia, atlética e acrobática em manifestos vibrantes, imantados, críticos, talvez até catárticos, mas sem terror nem piedade, pelo contrário: com humor e liberdade. Com rigor técnico e ousadia, despertando identificações, mas ao mesmo tempo assumindo distanciamentos necessários para narrar e sutilmente comentar a própria ética da representação em cena, incorporando-se as dimensões étnico-racial, de gênero e das migrações e trânsitos por diversas regiões do país ao debate da identidade brasileira.
A história de Jackson do Pandeiro também é apresentada como a da(s) comunidade(s) à qual ele pertenceu e que o apoiaram, o ensinaram e compartilharam com ele a criação das músicas e a produção do trabalho artístico num capitalismo periférico de exploração voraz, que volta as costas a suas artistas trabalhadoras, não deixando-as envelhecer, ou esquecendo-as quando envelhecem. Flora Mourão, já mencionada, Almira Castilho, companheira de Jackson na arte e no amor, entre outras, estão lindamente honradas na cena de Luiza Loroza e em diversas outras, sendo essa uma das espinhas dorsais da dramaturgia.
No musical brasileiro, na encosta da represa, o teatro se fez poesia e política, trazendo à razão pública a íntima e inteira narrativa de quem reconhece que cai, é tombado, mas ginga, se levanta e, como no Diário de um retorno ao país natal, de Aimé Cesaire, de pé e livre, peita o mundo ao redor que parece desmoronar. Com a Barca dos Corações Partidos, o céu ainda está sobre as nossas cabeças, parece que é possível impedir ele de cair, e, além disso, ele é estrelado. Escuridão que reluz, que nem as platinelas dos pandeiros tocados e arremessados ao ar em jogo entre os atores da Barca. Na síncope. Sem perder a batida.
(Foto da capa: Vivian Gradela)