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Embrenhar-se – ‘Salto no Vazio – Si-pó’

Quem deixa maltratar a natureza deixa maltratar a si mesmo, nós também somos natureza. É estranho ter que relembrar isso o tempo todo, mas se temos que religar nossa humanidade à natureza é porque alguma coisa deu muito errado no projeto de civilização do Ocidente. Pra entender como pode acontecer impunemente tudo que acontece hoje na Amazônia – como chegamos aonde chegamos? – teremos que distender nossa percepção. Entender com o corpo o lugar onde vivemos. Que outros seres o habitam além de nós humanos? Os corpos vegetais. A água. A terra. Qual a estética do ambiente natural, mesmo que estejamos na praça central da região urbana de uma grande cidade? Como ela impacta e reorienta (ou desorienta) nossa maneira de olhar, habitar e se mover no mundo?

Perguntas como essas não farão sentido se tentarmos respondê-las em forma de discursos palavrórios. Pra encará-las, precisamos aceitar o convite do performer amazonense Odacy Oliveira e saltar no vazio. Por isso é difícil escrever essa crítica. Porque ela não é uma crítica, é um caminhar junto nas trilhas de carvão e cal, é se permitir subir junto nos cipós, na fonte de água pública, nos descampados de paralelepípedos e canteiros de terra.

Buscar essas respostas é necessariamente se afastar do antropocentrismo de nossa sociedade, é reaprender o papel do ser humano (determinados seres humanos, que nem todas as pessoas têm estatuto de humano) não como um proprietário da Terra mas como filhe dela. A ideia de que é possível destruir os mais diversos biomas do planeta sem que haja nenhum tipo de consequência catastrófica é uma fantasia. Das mais perversas. Odacy a desvela em Si-pó, que tem um cunho eminentemente político, despertando a reflexão sobre a realidade e os saberes amazônicos, questionando os limites do falso binômio natureza/cultura. O ritmo absurdo de consumo em nossas vidas, que acelera até a velocidade do nosso pensamento e afeta diretamente a saúde mental, é um dos efeitos nocivos dessa lenda progressística segundo a qual a humanidade está sempre a evoluir e o progresso trará melhorias de vida e bem-estar para todes. Não há mentira maior do que essa.

No FIT, Odacy realizou o Salto no Vazio em dois lugares completamente diferentes entre si: o Graneleiro, à noite, e a Praça Rui Barbosa, em plena luz do dia. O público se reuniu em volta, alguns em pé, outros sentados, outros ainda caminhando atrás dele em deslocamento pelo espaço. Ativaram-se relações entre materiais orgânicos na praça: galhos, troncos, grama, cipó, terra, e também as estruturas de concreto e metal no antigo armazém de grãos da Swift. Além da matéria, o tempo e o espaço se distenderam e se reposicionaram na percepção do coletivo. Parece que a visão, a audição, o sentido do ar na pele, tudo se alargou quando saltamos no vazio e nos demos conta pelo menos por um instante do quanto de natureza somos (inteires), o quanto de floresta existe por debaixo e nas frestas das praças e canteiros urbanos.

O performer se embrenha na paisagem, dançando entre as plantas, suspendendo-se numa corda comprida amarrada na árvore mais alta. Ele se suspense no ar, suspendendo o próprio tempo junto com ele, compondo quadros e desenhando linhas de movimentos que evidenciam geometrias e torções de troncos e galhos. O “embrenhar” é processo de pesquisa contínuo de Odacy, que, ao longo de sua extensa trajetória artística, em determinado período se embrenhou na floresta em busca de se despir das construções coloniais e de se encontrar mais profundamente consigo mesmo. A ação performática, de modo coerente com o processo e a proposta de linguagem, nos convoca a embrenhar o humano no natural, observando as corridas do performer pelo espaço, suas passadas firmes no chafariz, suas pisadas na água espalhando-a pelo espaço, sua cabeça e seus olhos mirando o céu, sua escalada na grande corda que lembra um cipó.

Dependurado de cabeça para baixo, com a corda enrolada até o pescoço, ele reterritorializa todo o ambiente ao redor, e com ele as relações entre as pessoas que o assistem. Durante toda a performance, lançam-se sons ao ar a partir dos sentidos que o espaço desperta, e Odacy nos olha profundamente, acessando-nos intimamente. Ele ouve o eco de sua voz ressonante tanto na acústica do espaço aberto quanto em nossas retinas atentas. Não importa tanto se os sons têm algum significado linguístico, pois ele os entrega às árvores, à fonte de água, a nós que o assistimos. Mesmo que não sejam palavras, nos envolvem e exprimem o sentido profundo de habitar aquele lugar naquele momento. É outra dimensão de tempo e espaço que se instala, e nela a comunicação ocorre de uma forma diferente, não só pelos significados dos sistemas de línguas ocidentais como os que a maior parte de nós conhece e fala neste país. São outras tessituras que estão em jogo.

É também a textura dos materiais que ele utiliza pra desenhar caminhos pretos e brancos no chão. É a da argila, ou do material que lembra a cor de barro (não sei dizer exatamente qual) que recobre toda a superfície da pele de Odacy. Ele está quase nu, com o corpo quase inteiro à mostra, em gesto poético de se mostrar como quem é, de se despir dos constructos coloniais repressores das subjetividades. Aqueles mesmo que disseram que uma pessoa como ele e tantas outras não poderiam ser reconhecidas pelas suas pesquisas de linguagem e suas belezas. É admirável a técnica e sensibilidade do performer em ressignificar a ocupação dos territórios e as relações entre os seres que o habitam (humanos ou não).

Essa ação performática já aconteceu em diversas paisagens e geografias: florestas, raízes de árvores alagadas, postes, praças, entre outros, mantendo-se o nome Salto no Vazio e alternando a descrição conforme o lugar: Si-pó, Amazônia Líquida, Amazônia Urbana, Igapó, O Vento etc. Que ela possa acontecer cada vez mais, ampliando nossos olhares, nossa escuta, nossa capacidade de percebimento do mundo e de nosso próprio corpo, assim como dos laços que nos ligam indissociavelmente às outras pessoas, aos outros seres do mundo. Que nossa humanidade não seja erosão, esterilidade e devastação. Que a gente possa aprender com Odacy Oliveira a ouvir com todo o corpo o vazio que não é oco. É eco.

(Foto da capa: Vivian Gradela)

Olhar crítico de

AVE TERRENA

obra

SALTO NO VAZIO – SI-PÓ

CorpoContemporâneo21

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