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‘Edifício Cristal’ e as crônicas das profundezas da subjetividade humana

Edifício Cristal é um espetáculo de espírito silencioso e íntimo. Espetáculo não no sentido stricto da linguagem teatral de uma obra encenada por um elenco num palco para uma grande plateia. Devemos ressignificar a noção dessa palavra, para nos abrirmos à autenticidade e lirismo da instalação apresentada na Biblioteca Municipal.

Há aqui economia de recursos físicos e abundância na manufatura da construção da mobília animada que é a cristaleira, ambiente no qual transcorre Edifício Cristal.

Invenção da Cia In.co.mo.de-te (Porto Alegre), com idealização de Liane Venturella, que também assina os textos em parceria com Nelson Diniz, o trabalho surgiu a partir do contexto da pandemia sendo iniciado com a decretação do isolamento social ante ao desconhecido da covid-19.

A cristaleira é uma mobília presente em lares de famílias abastadas, preserva uma variedade de copos e taças produzidas neste material mais refinado do que o vidro comum. Em geral, as porcelanas também são guardadas nesse móvel completando o conjunto de utensílios manuseados apenas em ocasiões especiais, porque são como preciosidades do lar.

Para cada uma das cinco prateleiras da cristaleira, há dois apartamentos minuciosamente montados em miniaturas com objetos elaborados por Nelson e cenografados por Liane. Das camas, sofás, mesas, cadeiras e cristaleiras aos talheres, plantas, pôsteres (alguns de montagens da própria Cia In.co.mo.de-te), tudo foi confeccionado a partir de materiais reaproveitados atentando ao fato de que nos primeiros meses de quarentena os trânsitos ficaram restritos.

Os apartamentos são identificados pelos botões numerados do 101 ao 502, que reproduzem os mesmos botões que encontramos em elevadores de edifícios antigos. Três pessoas por vez podem se sentar, colocar um dos fones e escolher em comum acordo qual botão apertar para escutar uma das dez narrativas biográficas que, ao acionarmos os interruptores, iluminam o apartamento correspondente.

Fizemos o percurso da última unidade residencial para a primeira. Começamos nos comovendo com a história do zelador do apartamento 502, recém viúvo e recém dispensado pelo síndico, e sua narrativa aproxima a frieza do apartamento quieto à que acomete seu coração sem a presença de sua companheira.

As histórias são contadas por diferentes vozes, Liane e Nelson, na companhia de Carlos Ramiro e de Letícia Vieira, conferem caráter e temperamento a cada narração que somada à ambientação dos apartamentos instigam nossa imaginação a criar visualidade para cada personagem.

Há fórmulas conhecidas que podemos identificar como arquétipos da contemporaneidade como o escritor ranzinza de sucesso profissional, porém fracassado na vida pessoal, que vive no sofisticado apartamento 501; ou a senhora viúva e vigorosa de gosto exuberante, que busca ser gentil com todas as pessoas, como o literato solitário da cobertura ou com o zelador para quem entrega comida quentinha, afinal, quem sabe ajuda a amenizar a friagem do peito. 

Porém, há doces surpresas! No apartamento 401 vivem Lena e Lúcia, e as suas crias Lucas e Laura, filho e filha do ventre-coração, que presenteiam o condomínio com aquela algazarra deliciosa de escutar que fazem as crianças quando brincam. Ou o professor universitário aposentado que tem um hobby nas viagens para as quais se organiza financeiramente, a fim de ter esse desfrute de tempos em tempos, que também nos surpreende, especialmente ao descobrirmos que, para ele, os banheiros são “os únicos lugares onde podemos ser nós mesmos”. Nesse apartamento, o 403, há uma solução espacial diferenciada, em vez de expor a sala e parte dos aposentos, como na maioria das unidades, nesta destaca-se a toalete como lugar favorito da personagem.

No número 201 também observamos outra abordagem do espaço cênico e que se relaciona às questões individuais do senhor que o habita. Nesse apartamento, em vez de se ressaltar o espaço interno e a mobília, são os corredores com sacos e sacos de lixo que são exibidos, denunciando as demandas de ordem psicológica e psiquiátrica que acometeram muitas pessoas durante o período mais rígido de ações contra o avanço da pandemia.

É interessante o clima de voyeurismo que resplandece durante a audiência dessa instalação ao adentrarmos as complexidades cotidianas de cada residente dos apartamentos, sobretudo porque acompanhamos a reconfiguração do dia a dia a partir da circunscrição ao espaço doméstico.

Sabemos que os nossos traumas e dramas nos visitaram persistentemente durante os quatro meses de encerramento mais densos, de março a junho de 2020, e nas crônicas descritas vemos esse conflito juntamente com o reconhecimento e a reinvenção da rotina: do jovem casal da unidade 301, cujo parceiro se descobre ator na sua necessidade de romper com tédio e divertir a amada; da recuperação da relação entre mãe enferma e filha cuidadora que se muda para o apartamento 202 a fim de dar à sua progenitora essa assistência; da solidão que substitui a liberdade sonhada pelo domiciliado na unidade 102, que rompeu o matrimônio sereno e maduro de décadas em busca das emoções fugazes da solteirice.

Edifício Cristal é uma instalação discreta que ocupa uma aresta no amplo espaço do hall da Biblioteca Municipal, que dispensa o dinamismo próprio da nossa época e requer que saiamos do tempo Tik Tok para sentarmos com disposição e concentração no olhar, no escutar, na ambientação, nos detalhes, permitindo-nos a reconexão com as profundezas da subjetividade humana.

(Foto da capa: Milena Áurea)

Olhar crítico de

RENATA FELINTO

obra

EDIFÍCIO CRISTAL

Cia In.co.mo.de-te

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