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Calmaria, fúria e navalhadas – O ‘Solo de Marajó’

Pra começar esta escrita é importante reconhecer e publicizar minha ignorância, que sei que não é só minha, mas de muitas outras artistas, pesquisadoras, e do público em geral do Sudeste em relação a um grande escritor brasileiro, autor de livros clássicos da literatura e amplamente desconhecido por nós: Dalcídio Jurandir. Sua obra compreende onze romances, dos quais dez integram o Ciclo do Extremo-Norte, retratando, e, mais do que isso, imergindo na vivência, na percepção de mundo, nos desafios e afetos da população amazônica, sobretudo de quem vive no andar de baixo, como diz Kil Abreu. Caboclos, ribeirinhos, trabalhadores, entre outros habitantes da Ilha de Marajó – onde o escritor nasceu – são personagens nos quais Alberto Silva Neto e Claudio Barros se inspiraram para criar a dramaturgia do espetáculo Solo de Marajó, que se baseia no livro Marajó, segundo do Ciclo do Extremo Norte.

Na peça, conhecemos histórias múltiplas, entretecidas em pontos de vista diversos de personagens que vão se cruzando, pontilhados de lirismo, encarando seus conflitos. Algumas retornam na história das outras, despertando em nós, do público, um deslocamento, pois passamos a vê-las pela perspectiva de outras personagens, com outros enfoques narrativos sobre as individualidades que parecíamos já conhecer. Assim, as humanidades se verticalizam ao mesmo tempo que percorremos um panorama, o horizonte amazônico de vidas atingidas pela truculência e desfaçatez de homens agressivos e abusivos, de autoridades aproveitadoras, de exploradores da vulnerabilidade alheia, capatazes da pobreza. Tudo que leva as oprimidas a desenvolver, na mesma proporção da violência que sofrem, uma força de autodefesa e até mesmo uma resiliência.

Na literatura e no cinema, é conhecida a técnica do contraponto, quando as narrativas vão trançando fios de vidas de diversas pessoas em diferentes situações, ora protagonizando-as, ora em plano secundário. Assim, provoca-se um sentido do todo de um momento histórico no qual minha história não está isolada e nem é independente da sua e nem da das outras pessoas com quem compartilhamos o tempo presente – elas acontecem todas simultaneamente, num turbilhão a cuja totalidade não temos e não teremos acesso. Mas a narrativa tem o poder de despertar essa sensação, como se mirássemos o mural da história de um povo e conseguíssemos ver ao mesmo tempo tudo que acontece com as variadas pessoinhas na multidão. Alguns exemplos são os livros Parque Industrial, de Patrícia Galvão (inspirada nos romances muralistas de Oswald de Andrade), Contraponto, de Aldous Huxley, Caminhos Cruzados, de Érico Veríssimo, e os filmes Amores Brutos e Babel, dirigidos por Alejandro Gozález Iñárritu com roteiro de Guillermo Arriaga.

É ao lado dessas autoras que percebo e compreendo a dramaturgia de Solo de Marajó, lançando mão da técnica narrativa para configurar um mural de vidas amazônicas. Histórias cortantes, sublinhando a crítica e a denúncia da violência de gênero que perpassa praticamente todas as histórias, mas ao mesmo tempo sem se privar do direito ao devaneio, como diz Tatiana Nascimento. A singeleza de momentos íntimos, de instantes de calmaria antes das navalhadas e da fúria, reabastece nossas energias num cenário que é exuberante – a floresta, os rios – mas ao mesmo tempo árido, pois, estruturalmente forjado na desigualdade e na brutalidade contra a maior parte do povo.

Os autores deste espetáculo enaltecem a humanidade e o sentido dos habitantes despossuídos das próprias terras onde nasceram e cresceram, ofertando ao público suas narrativas não só como fatos frios a serem dissecados ou acontecimentos distantes retratados na chave do exotismo. Isso é digno de nota e algo a ser exaltado, principalmente quando falamos da representação de povos da floresta, ribeirinhos, caboclos, e também da Amazônia urbana, na maior parte das vezes ainda restringidos à superfície de sua experiência de vida, reduzidos à desgraça inerente ou a um deslumbre ingênuo.

As subjetividades são corporificadas em cena por Claudio Barros em construções físico-vocais minuciosas na pesquisa da expressão corporal de cada uma das personagens representadas. A elas, intercala-se a voz de um narrador onisciente e consciente na análise de seu posicionamento político, sem que com isso seja suspeito ou tendencioso, pelo contrário: é sutil, detalhista, generoso na observação das humanidades contraditórias. No palco nu, esse corpo-voz narrativo parece ser a expressão do narrador literário, devorado pelo ator pra traduzi-lo e emancipá-lo no presente encarnado do teatro. Ator que, aliás, já está em cena desde a entrada do público, dialogando, sentando-se ao nosso lado, observando o movimento até o saguão de entrada, até que pergunta: “Posso começar?”, dirigindo-se então ao palco.

A autenticidade do momento inicial cria intimidade entre ator-narrador e espectadores, e isso é cálculo caprichoso da encenação, pois dessa forma já se quebra de cara a relação de consumo ou misticismo que o público poderia adotar em relação a narrativas até então pouco conhecidas. Esse pacto inicial é decisivo ao projeto de humanização que Solo de Marajó efetiva em cena. Quando Barros adentra o palco, há um corte de linguagem, um trânsito breve entre a dimensão performativa do ator em cena e a da narração, quando uma presença cênica extra cotidiana é acionada para contar as histórias. As partituras do trabalho de atuação buscam desalinhos e instabilidades do corpo e da voz multidimensionais, amplificando-os com domínio técnico de tamanho rigor e perfeição que às vezes até nos desconectamos dos fatos narrados pra nos deixar levar pelas figuras representadas pelo ator.

Construções físico-vocais que revelam a desordem na qual as personagens estão inseridas, em ciclos pontuados pela escuridão que domina o palco ao final de cada um dos causos. As escolhas da dramaturgia cênica buscam, de certa forma, a harmonia, mantendo pulsação regular no desenho de cena, pois cada história se inicia em blackout, com um anúncio de qual história virá e sobre qual personagem ela se trata. Frente à imensa desordem e aos desmandos que as personagens enfrentam, a encenação toma o caminho da coesão, da proporcionalidade e da síntese, organizadamente narrando e representando a desordem.

De nós, público, é demandada uma atitude de atenção e concentração no ambiente ritualístico da teatralidade. Nós também precisamos participar da construção desse pacto de intimidade que nos permitirá a abertura necessária para conhecer humanidades silenciadas, retalhadas e exiladas de sua própria terra. Na jornada conduzida pelo ator-rapsodo de Solo de Marajó, nossa imaginação é convidada a imergir ativamente nas palavras-mundo de Dalcídio Jurandir para que ele não seja de novo e de novo varrido para o esquecimento de nossa ignorância. Nem ele, e nem as pessoas cujas vidas ele evoca na literatura, e que Claudio Barros e Alberto Silva Neto evocam no teatro.

(Foto da capa: Jorge Etecheber)

Olhar crítico de

AVE TERRENA

obra

SOLO DE MARAJÓ

Usina Contemporânea de Teatro

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