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Protagonismo feminino: mulheres falam por si no FIT Rio Preto 2023

O protagonismo da mulher no teatro não diz respeito somente à presença feminina como personagem, ainda que central, do texto e da cena. A temática pode e deve trazer luz a uma pauta urgente fora dos palcos: as histórias de mulheres contadas por mulheres, reforçando o protagonismo feminino a partir da sua própria narrativa, olhar e lugar de fala. Pela própria essência e vivência de ser mulher, elas têm muito o que dizer. Por isso, incentivar o exercício de escuta (delas e por elas) é uma das propostas do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (FIT Rio Preto), programado para o período de 20 a 29 de julho. Em 2023, o evento, considerado um dos mais importantes festivais de artes cênicas do País, completa 54 anos de história e 21 anos de edição internacional. 

Buscando proporcionar “lugares de escuta”, a curadoria do FIT Rio Preto 2023 compôs uma programação repleta de pautas urgentes, inclusive as femininas, tratadas com diferentes abordagens artísticas em 30 espetáculos, entre produções brasileiras e de mais três países: Argentina, Portugal e Reino Unido. 

Na seleção curatorial, as mulheres ganham destaque sob vários prismas. Um deles está num dos espetáculos mais aguardados do festival, em que duas atrizes conhecidas do grande público por seus trabalhos na televisão e no cinema se enfrentam sob a pele de duas rainhas. Virginia Cavendish e Ana Cecília Costa vivem no palco, respectivamente, a rainha da Escócia Mary Stuart e a rainha da Inglaterra Elizabeth I, em montagem dirigida por Nelson Baskerville.

O espetáculo “Mary Stuart” é uma adaptação do texto de Friedrich Schiller (1759-1805) feita por Robert Icke, propondo um mergulho na vida dessas duas rainhas e revelando a traição, a violência e a desonestidade como armas políticas para se manter no poder. Um ponto de vista pouco abordado e propagado em um mundo que enxerga a história quase sempre pela ótica das relações patriarcais. “Um mundo de rainhas onde os homens (como sempre) tentam dar as cartas, um poder que aprisiona tanto quanto o próprio cárcere e a não admissão de opiniões opostas”, comenta o diretor. 

Segundo Virginia, que já integrou o elenco de filmes de forte apelo popular como “O Auto da Compadecida” e “Lisbela e o Prisioneiro”, o espetáculo “Mary Stuart” é dedicado a todas as mulheres que foram humilhadas, mortas e queimadas na fogueira; a todas as mulheres assassinadas pela brutalidade e covardia do sexo masculino.

Violência contra a mulher
Também com viés histórico, mas num contexto da realidade  brasileira, que carrega as mazelas da colonização e exploração humana nos desbravamentos do Brasil, o musical “Cabaré Chinelo”, do coletivo Ateliê 23, de Manaus/AM, expõe um esquema de tráfico sexual e internacional de mulheres, que marcou aquela região no início do século XX. 

O espetáculo nasceu a partir da pesquisa de mestrado de seu diretor, Taciano Soares, na Universidade Federal da Bahia, em que denuncia o tráfico de mulheres no Brasil no início do século passado, tendo como foco cidades brasileiras como Manaus, Belém, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, além de diversos países da América do Sul. 

Em Manaus (AM), esse esquema se deu em alguns pontos da cidade, principalmente no Cassina, o maior hotel do período áureo do ciclo da borracha e que vulgarmente era chamado de Cabaré Chinelo. É a partir desse local que se desenvolve o enredo do espetáculo musical. Em “Cabaré Chinelo”, o teatro flerta com histórias reais e materiais documentais, conceito que a companhia manauara intitula como bionarrativas cênicas. O musical marcou as comemorações dos 10 anos de história do Ateliê 23.

Sobre mulheres e búfalos
Em outro espetáculo, mais um recorte sobre a vivência e a sobrevivência feminina em contexto social adverso. “Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos”, da Companhia de Teatro Heliópolis, de São Paulo, denuncia a violenta realidade do encarceramento em massa de pessoas pretas, pobres e periféricas e, ao mesmo tempo, reconhece a força da resistência feminina. No enredo, mulheres que são companheiras de homens submetidos ao sistema prisional, vivendo as angústias do cárcere do lado de fora da prisão.

O espetáculo equaliza o real e o simbólico ao acompanhar a trajetória de duas irmãs cujas vidas são marcadas pelo encarceramento dos homens que as rodeiam. Maria dos Prazeres e Maria das Dores materializam a força de Iansã, rainha Oyá, deusa guerreira dos ventos, das tempestades e do fogo na mitologia iorubá. “Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos” acumula uma série de prêmios desde sua estreia em 2022, entre eles o APCA de melhor dramaturgia, o Shell de melhor dramaturgia e música e o Prêmio Leda Maria Martins na categoria ancestralidade, além de ser indicado pelo jornal Folha de S.Paulo como um dos melhores espetáculos de 2022.

Canto de resistência das mulheres à margem
Uma curadoria que aborda a arte da escuta, lugar de fala, representatividade e empoderamento não poderia deixar de exaltar a história protagonizada por Verónica Valenttino, a primeira atriz trans a vencer os Prêmios Shell (Melhor atriz) e Bibi Ferreira (Revelação). No espetáculo, ela dá voz a Brenda Lee, pioneira da luta contra a aids no Brasil e figura referencial da militância de travestis e transexuais. Além disso, o musical “Brenda Lee e o Palácio das Princesas” também rendeu ao Núcleo Experimental o Prêmio de Melhor Espetáculo Teatral de 2022 da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). 

O espetáculo dá voz e protagonismo à comunidade, já que o elenco é composto em sua maioria por artistas trans, contando a história da pernambucana Caetana, radicada em São Paulo que acolheu travestis e transexuais infectadas pelo vírus HIV nos anos 1980, época em que os estigmas eram latentes, afetando diretamente a comunidade LGBTQIAPN+. Brenda Lee fundou a primeira casa de apoio para pessoas com HIV/aids do Brasil, o Palácio das Princesas, trabalho que lhe fez ser considerada “anjo da guarda das travestis”. O musical é um canto de resistência que apresenta ao público a trajetória de Brenda Lee e de cinco de suas “filhas” em meio à epidemia de aids e à perseguição policial à comunidade trans na capital paulista. 

Meninas sem limites para sonhar   
Seis espetáculos compõem a programação infantil do FIT Rio Preto 2023. Para as meninas, às quais as possibilidades de futuro sempre foram limitadas e limitantes, no universo da arte o céu não é limite. “Do que são feitas as estrelas?” resgata a trajetória inspiradora de Cecília Payne (1900-1979), cientista inglesa que, em 1925, aos 25 anos, descobriu a composição das estrelas, em uma época na qual as mulheres não recebiam diploma e muito menos eram incentivadas a estudar e construir uma carreira profissional. Por meio da trajetória da astrônoma inglesa, que no espetáculo é uma menina guerreira, a narrativa combate a errônea e antiga ideia de que existem profissões que não cabem às mulheres, incentivando garotas e garotos a serem quem são e seguirem os seus sonhos.

Também no campo da arte, alguns papéis não são comumente incentivados às mulheres. A figura do palhaço, por exemplo, foi sempre muito mais representada pelos homens. Em contraponto a este fato e trazendo ainda um recorte racial, o espetáculo para crianças e jovens “E o palhaço, o que é?”, da Cia. Palhaçaria, conta a história do palhaço Xamego, que quebrou paradigmas e ampliou os horizontes da arte circense para as mulheres. 

Em uma época em que as mulheres não atuavam como palhaços no universo circense, Maria Eliza Alves dos Reis (1909–2007) era uma das atrações principais do Circo Guarany, em São Paulo. O palhaço Xamego, criado pela artista preta em 1940, tinha o rosto pintado de branco e roupas masculinas, evidenciando um apagamento de sua própria identidade e gênero para aceitação do público. Protagonizado pela atriz Gisele Lançoni, o palhaço Xamego, ao encerrar mais uma apresentação no picadeiro do circo, entra no camarim evitando acordar um bebê que está dormindo e, aos poucos, enquanto se divide entre diversas atividades domésticas, desvenda e revela nuances dessa figura do universo circense. Maria Eliza é um marco por ser a primeira palhaça preta que alcançou seu espaço nos picadeiros, onde, ainda hoje, poucos pretos ocupam o papel de protagonismo.

Pautas como meio ambiente, múltiplas vivências LGBTQIAPN+, questões raciais também estarão presentes no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto nesta edição que evidencia a contemporaneidade em antigas discussões, incentivando a escuta e empatia, que são matérias-primas essenciais da arte. 

Escuta feminina para além dos palcos
A programação do FIT Rio Preto, além dos espetáculos, é composta também por uma agenda de ações formativas, que este ano traz rodas de conversa, workshop, lançamentos editoriais e vivências, todos alinhados com o tema da curadoria: o incentivo aos exercícios de escuta. 

Falando em protagonismo feminino, uma das ações que vale a pena destacar é o encontro “Escutas Femininas”, que consiste no lançamento editorial das obras de quatro mulheres. Dos palcos à literatura, é o momento de prestigiar a arte produzida por elas. 

Claudia Schapira é dramaturga, diretora, atriz-MC e figurinista, e estará lançando o livro “A palavra como território – Antologia Dramatúrgica do Teatro Hip-Hop”. A autora Dione Carlos é também é dramaturga, roteirista, atriz e curadora, possui mais de 20 peças teatrais encenadas no Brasil, em Portugal, Inglaterra, Colômbia, entre outros países, e virá ao FIT Rio Preto apresentar seu lançamento “Palavra viva: dramaturgias de Dione Carlos”. “Além da Commedia Dell’Arte– A aventura de um Barracão de máscaras” é a obra que será lançada pela atriz, diretora e pesquisadora de teatro, Tiche Vianna. E compondo o quarteto de estrelas desta ação formativa, Silvia Gomez, jornalista, dramaturga e roteirista, apresenta aos leitores riopretenses o livro “Mantenha fora do alcance do bebê e Neste mundo louco, nesta noite brilhante”. 

Serviço:
FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO – FIT RIO PRETO 2023
20 a 29 de julho, em São José do Rio Preto (SP)
Realização: Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, e Sesc São Paulo
Parceria: Sesi São Paulo
Apoio institucional: Conselho Municipal de Políticas Culturais e Núcleo dos Festivais de Artes Cênicas do Brasil

Foto: espetáculo ‘Mary Stuart’/Divulgação

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