O FESTIVAL

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FIT Rio Preto 2024

Curando a MEM{ÓRÌ}A

Curadoria: substantivo feminino. Ato, processo ou efeito de curar; cuidado; 

Órì: palavra da língua iorubá, que significa, literalmente, cabeça; refere-se a uma conexão com o plano espiritual; 

Memória: Faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos.

Sob a orientação e responsabilidade diante dessas palavras e do que delas emerge, nós da curadoria de espetáculos do FIT 2024, visitamos atentamente as obras inscritas no Festival e apreciamos com cuidado centenas de espetáculos, na tentativa de manter os sentidos abertos para “ouver” o que o teatro estava nos contando enquanto poética, potência, necessidade e representatividade no Brasil e fora dele. Foi uma jornada longa, árdua e permeada de muitos aprendizados. 

É sempre desafiador um processo de curadoria, mas é também uma experiência que nos reafirma o poder da arte na manutenção da vida e na projeção de futuros possíveis. É muito além de escolher trabalhos para compor uma programação, mas refletir e corroborar com a fruição de obras que fomentem reflexões e práticas que considerem, ética, política e esteticamente a diversidade, os territórios, a representatividade, os contextos e as plurais formas de existir e criar. 

Na procura de melhor curar, alguns caminhos apareceram: Neste ano, o “TEN – Teatro Experimental do Negro” – criado pelo professor Abdias do Nascimento – celebra 80 anos de fundação. Essa celebração é simbólica e não poderia deixar de permear o olhar da curadoria nos encontros com todo o material que chegou até nós. Um Teatro de resistência, de grupo, de formação e MEMÓRIA. 

Eis a palavra guia. Foi ela que mais transitou nas dramaturgias e regeu as pesquisas na maioria das obras que se apresentavam.  

As memórias não são o resultado espontâneo da passagem do tempo, tampouco um relicário das experiências individuais. Nossa relação com o passado é um ato simultaneamente individual e coletivo que se realiza no presente e que pode se orientar em muitas direções. Lembrar é um trabalho social e político que pode ser caracterizado pela lembrança e pelo esquecimento, pela voz e pelo silenciamento, pela liberdade e pela opressão, pelos afetos e pela violência. Decorre daí a importância da História contar sobre diversas memórias, de modo que seja possível entrelaçar individualidades e coletividades e garantir, igualmente, o direito à identidade e à diferença.

 “O presente é o interlocutor do passado e o locutor do futuro” (Antonio Bispo dos Santos – Nêgo Bispo)

Confluir e não interculturalizar. Um conceito da Roça de Quilombo, propagado pelo eterno Nêgo Bispo, que reorganiza a ideia dos cruzamentos como fortalecimento das identidades, e não a substituição ou apagamento delas. Não saímos em busca de escolher espetáculos e sim perceber o movimento e as confluências das tantas falas. Todas elas. Muitas vozes.

O teatro tem o poder de interferir nos tempos, materializar os sonhos. Ali, a memória tem espaço para ser contada, reconstituída, recuperada, reinventada, sonhada. Eis a chance de organizar esta convocação. Se, historicamente, o controle de corpos e mentes foi um dos principais instrumentos da manutenção das diversas formas de dominação, a imaginação e a celebração sempre foram dispositivos de luta e resistência. E continuam sendo. Por isso mesmo, acreditamos que tanto artistas, quanto públicos poderão continuar fazendo do FIT Rio Preto um lugar para a trama coletiva dos significados e dos sentidos da experiência comum, um terreiro de festa e de reencantamento do mundo.

“Cultura é uma luta permanente de libertação do ser humano” (Abdias do Nascimento)

Diego Valadares, Monique Cardoso e Naruna Costa 

Curadoria de espetáculos

AÇÕES [PER]FORMATIVAS: ARTICULANDO MOVIMENTOS, SABERES E PARTILHAS

Identidades e modos de vida não são dados concretos em nosso mundo, mas, sim, construções que se tornam visíveis, através do tempo, por meio de ações materializadas no agora em que existimos. No teatro, essas estruturas se manifestam de forma vibrante e visível, permitindo que sejam continuamente elaboradas nas múltiplas camadas da existência humana.

A cada encontro é estabelecido um espaço seguro de troca e reflexão por meio dos corpos e das memórias que cada existência, ali presente, coloca no mundo. As atividades extrapolam a ideia de saber pela palavra falada ou escutada e perpassam o saber pelo invisível, pelo que percebemos na pele e nas presenças compartilhadas. Entre transbordamentos, rupturas, (im)permanências e dinâmicas dos movimentos, saberes e partilhas, as hierarquias e colonizações do pensar e saber dissolvem-se no tecer das realidades, nas coreografias do convívio, nos reflexos das reações e no ressoar das identidades; somos pela vastidão dos sentidos. Tempo, espaço, corpo e presença constroem as Ações [Per]Formativas do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto – FIT Rio Preto 2024.

A programação conta com ações performáticas, residências, processos de criação, acompanhamentos de montagens e encontros, possibilitando o movimento contínuo das ideias que atravessam a programação do festival. Nessa espiral, partilharemos saberes e construiremos novas memórias. Parafraseando Leda Maria Martins, desejamos que nestes encontros os nossos corpos dancem uma coreografia coletiva para que de alguma maneira isso seja também política.

“o corpo em performance é o lugar do que curvilineamente ainda e já é, do que pôde e pode vir a ser, por sê-lo na simultaneidade da presença e da pertença. Um já ter sido no em vir, no revir e no em ser.” (Leda Maria Martins) ¹

¹ MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: Poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. 

Rafael Bacelar

Curador das Ações [Per]Formativas

Para aqueles que virão depois de nós

Memória e Ancestralidade são temas fundamentais para a compreensão da identidade de um povo e para a construção de sua história. Por meio  da preservação da memória e do resgate das tradições ancestrais, é possível manter viva a cultura de um povo e garantir a continuidade de suas práticas culturais. Nesse sentido, o FIT Rio Preto caminha em direção ao futuro, reverenciando seu passado e permanentemente, reinventando-se.

O FIT Rio Preto é um festival que reúne espetáculos de teatro e outras manifestações artísticas, proporcionando um intercâmbio cultural entre artistas de diferentes partes do mundo e promovendo o diálogo entre diferentes culturas. Por meio  de suas apresentações, o festival contribui para a preservação da memória cultural e para o fortalecimento da identidade de um povo, valorizando a diversidade cultural. Além disso, o FIT Rio Preto também é uma oportunidade para artistas locais e internacionais compartilharem suas experiências e conhecimentos, enriquecendo a cena cultural da cidade e ampliando as perspectivas artísticas de seu público.

No cenário internacional das artes cênicas, o FIT Rio Preto se destaca como um espaço de reflexão e de proposição à diversidade de pensamentos. Ao valorizar a diversidade cultural, o festival contribui para a construção de uma sociedade mais inclusiva e plural, em que  as diferenças são celebradas e as heranças culturais são preservadas. Assim, o FIT Rio Preto se consolida como um importante evento no calendário das artes cênicas, tornando-se um ponto de referência no fortalecimento da identidade cultural e na valorização da memória coletiva.

Devemos reverenciar o passado, atribuindo-lhe a importância dos tempos nascedouros e devemos acreditar na possibilidade de futuros, na qual  a sociedade possa se reconhecer a partir de suas memórias, históricas e afetivas.

Que o FIT 2024 possa ficar registrado na memória de todas as pessoas como um encontro de potências e transbordamentos!

Edinho Araújo

Prefeito de São José do Rio Preto

As artes cênicas no encontro entre memória e história

Estar em cena presentifica memórias. É como se o corpo, na encenação, recorresse a reminiscências de gestos que, em outros tempos, lugares, culturas e sistemas, se ofereceram à poética de performar o humano, sem os submeter a categorizações prévias. Na dinâmica da ação cultural e da criação artística, fundamental é perceber essa gramática do corpo e os elementos cênicos aos quais a experiência simbólica convencionou denominar artes da cena. Nessa perspectiva, a curadoria de um festival tem a liberdade criadora de fazer convergir os diversos códigos de teatralidade e a substância de suas representações para as interações com o público.

Na 22ª edição do FIT Rio Preto – Festival Internacional de Teatro (correalização da Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, e do Sesc São Paulo) é a memória o cerne da curadoria. Produções de diversas regiões brasileiras, além de convidados nacionais e internacionais, manifestam o pensamento sobre teatralidade em ampla acepção e, em sincronicidade, pelo viés da memoração, cruzam linguagens e fabulam sobre histórias de vida, ancestralidade, diversidade de corpos, migrações, lutas e alegrias cotidianas de pessoas comuns e de todas as gerações. Em cada obra, em cada ação formativa residem, portanto, questões latentes do nosso tempo.

Nessa imersão curatorial e programática, a presença de produções negras mostra-se bastante expressiva, demonstrando o vigor da atuação de artistas e coletivos negros no país. Essa participação incide, de modo muito feliz, sobre a celebração dos 80 anos da criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944 pelo multiartista e ativista dos direitos civis Abdias do Nascimento (1914-2011), cuja companhia teatral deu forte contribuição à defesa do acesso de pessoas negras aos direitos sociais e culturais. Assim, em memória desse griô abridor de caminhos, celebremos artistas negros de todas as linguagens, forças vitais da cultura brasileira.

Celebremos também os 55 anos de realização do FIT Rio Preto – originalmente, Festival Nacional de Teatro Amador. Esse tempo narra a singular história de pertencimento de uma cidade às poéticas da cena, às criações que avivam os corpos nas ruas, teatros, arenas, praças, rodoviárias e mercados; que estimulam encontros e trocas, fomentam o pensamento crítico, atualizam as tradições e movimentam a economia. Um festival em torno do qual foi construída uma memória social na confluência daquilo que fez e faz sentido para uma coletividade. Uma bela história, afinal.

Luiz Deoclecio Massaro Galina – Diretor do Sesc São Paulo